segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Editorial - Antes tarde do que nunca


Olá para todos!!!

Antes de mais nada, como foi anunciado na edição anterior do nosso ODiplomático, a partir deste número, estou como editora.

Para quem ainda não me conhece, sou aluna agora do sexto semestre matutino, curiosa com esse mundo grande e cheia de opinião sobre as coisas – nem sempre certas, mas normalmente ditas. Minha principal característica para os efeitos desta função é que o que me enche de vida é ver e ouvir o que os outros têm a dizer. Por isso, aguardo com a maior ansiedade a contribuição de todos os colegas para que o nosso blog seja cada edição ainda melhor.

Feitas as apresentações, passamos agora para esta edição. Estamos um pouco atrasados, mas vocês vão ver que vai ter valido a pena esperar.

Para começar, preparamos uma Agenda bastante interessante que vai desde oferta de estágios e chamadas de pesquisa para graduandos, a feiras, seminários e encontros ligados à área de Relações Internacionais e Comércio Exterior.

Logo em seguida, temos uma entrevista que nosso querido amigo Max Gimenes fez com a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli. Na entrevista, que foi publicada pela revista Caros Amigos (parabéns, Max!), Maria Lucia destaca a importância de as dívidas dos países latino-americanos sejam revisadas já que, nas suas palavras “o endividamento tem sido um mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas riquezas e travar o desenvolvimento do nosso continente”. Quem não se lembra das aulas sobre o estouro da dívida brasileira na década de 80?

A partir daí, temos três artigos. Um do Márcio Moraes (que dispensa apresentações) sobre o 51º Congresso da União Nacional de Estudantes (Conune), que contou com a participação de 4 delegados da Belas Artes e um observador – estão todos convidados a deixar suas impressões sobre o Conune aqui neste blog.

O segundo, também do Max, sobre as nacionalizações do governo bolivariano na Venezuela. E o terceiro, de minha autoria, sobre a tentativa dos países do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) de reduzir a dependência que suas reservas têm em relação ao dólar.
Temos ainda duas resenhas esta edição. Uma do professor Igor Fuser, que nos deixou na Belas Artes, mas continua escrevendo muito, sobre o livro A Revolução Venezuelana, de Gilberto Maringoni.

O outro, de um colega da USP, sobre o Amor nos tempos atuais. O Mauro resenha o livro Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman, e relaciona a superficialidade da vida hoje e sua influência nos relacionamentos pessoais.

Finalizando, nesta edição, ao invés de publicarmos uma charge, como de costume, disponibilizaremos um vídeo. Em tempos de gripe A, não custa nada lembrar que toda campanha internacional tem um interesse por trás.

Agora, passo a falar sobre a Enquete. Na última edição, 41% dos votantes apoiaram a decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder refúgio político ao ex-militante da esquerda armada italiana Cesare Battisti; 29% discordou; 25% concordou em partes e 4% discordou em partes. O caso ainda está para ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Nesta edição temos uma polêmica que deveria estar em todas as esquinas da sociedade brasileira, especialmente nas universidades e mais especialmente ainda nos círculos que discutem Relações Internacionais. O destino da imensa riqueza encontrada pela Petrobrás na camada abaixo do sal, o pré-sal. Como deve ser explorada, qual a melhor forma de extrair o petróleo e o gás de maneira que esteja a serviço do desenvolvimento do nosso país, quem deve fazer essa extração, o que e como fazer com o petróleo e, não menos importante, essa decisão deve ser tomada urgentemente ou é melhor ter mais elementos, mais pesquisas, para formar melhor uma opinião a respeito? Estas são algumas das perguntas que estão sendo feitas e respondidas, cada um de acordo com seus interesses.

Vocês estão acompanhando este processo? Esta é a pergunta da enquete.

Para quem estiver interessado em saber mais sobre o assunto, enviaremos a apresentação em PowerPoint do engenheiro e presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobrás, Fernando Siqueira, que esteve na nossa faculdade no final do semestre passado falando sobre o pré-sal.

Até a próxima!

Agende-se


UNIFEM: ONU e escola argentina dão 20 bolsas a jovens

Até 19/08, brasileiros de 18 a 30 anos podem se candidatar, pela internet, ao auxílio de US$ 2 mil, que incentivará pesquisas sobre temas sociais e de gênero.
Formulário disponível no site: www.catunescomujer.org/catunesco_mujer/form_inscripcion.php


2º Colóquio Internacional História das Religiões
Link: http://www.agencia.fapesp.br/materia/10872/agenda/2-coloquio-internacional-historia-das-religioes-teoria-e-metodologia.htm
27 e 28 de agosto na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Mais informações: historiadasreligioes@yahoo.com.br ou (11) 3670-8529.

Microsoft Research oferece bolsas e estágios
Link: http://www.agencia.fapesp.br/materia/10918/microsoft-research-oferece-bolsas-e-estagios.htm
Programas 2009-2010 de Estágios e de Bolsa de Estudos para Doutorado para estudantes latino-americanos abre inscrições no dia 17 de agosto.
Mais informações:
http://research.microsoft.com/en-us/collaboration/global/latam/latam-awards.aspx

Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Link: http://www.agencia.fapesp.br/materia/10907/simposio-de-pos-graduacao-em-relacoes-internacionais.htm
O simpósio será realizado de 12 a 14 de novembro, em São Paulo.
O Programa San Tiago Dantas de Mestrado Acadêmico em Relações Internacionais recebe até 17 de agosto propostas de trabalho para apresentação na primeira edição do Simpósio de Pós-Graduação em Relações Internacionais.
Mais informações: www.unesp.br/santiagodantassp

Agenda Centro Brasileiro de Relações Internacionais – CEBRI
* Atenção, a maioria dos eventos acontece no Rio de Janeiro onde se encontra a sede da instituição.

18/08/2009 Mesa-redonda: Colômbia, Honduras e Venezuela

21/08/2009 Seminário Jornalistas: União Européia e Mercosul

27/08/2009 Almoço: Embaixador Uwe Kaestner

Calendário Federação das Indústrias do Estado de São Paulo - Fiesp

10/09/2009 Encontro Empresarial Brasil-Dinamarca - Meio Ambiente

10 a 12/09/2009 Rodada de Negócios na Adventure Sports Fair

22/09/2009 Encontro Empresarial São Paulo-Miami

Feiras

XIV Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro
10/09/2009 a 20/09/2009 no Pavilhão de Exposições do Rio Centro. Aberta ao público das 10 às 22 horas

CARBONO ZERO – Feira e Conferência
06/10/2009 a 08/10/2009 no Centro de Exposições Imigrantes

FEIRA DE ENERGIAS - III Feira Internacional de Energias Alternativas
04/11/2009 a 06/11/2009 no Centro de Exposições Imigrantes

FIAM - 4ª Feira Internacional da Amazônia
25/11/2009 a 28/11/2009 no EXPO CENTER

Bate-papo - Max entrevista


Dívida pública faz a farra dos especuladores


A Auditoria Cidadã mostra como funcionam os mecanismos que colocaram o Brasil e outros países da América Latina reféns do capital financeiro

Por Max Gimenes

Em entrevista exclusiva (*), a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, conta como foi sua participação, a convite do presidente Rafael Correa, na comissão oficial de auditoria da dívida do Equador, em 2008. Presidentes de outros países, como Bolívia, Venezuela e Paraguai, demonstram a intenção de seguir o exemplo equatoriano. Para Maria Lucia, é preciso que o Brasil cumpra a Constituição Federal, que prevê a auditoria, para que a sociedade pare de pagar a conta à custa da privação de direitos sociais elementares, conta esta que a atual crise tende a tornar ainda mais cara.

Max Gimenes - Como se sentiu ao participar da auditoria da dívida do Equador, enquanto o Brasil continua a pagar, todos os anos, milhões de reais como juros de sua dívida?

Maria Lucia Fattorelli - A realização da auditoria oficial da dívida pública equatoriana foi um dos principais fatos políticos da história da América Latina, pois significa um importante passo no sentido de nossa verdadeira independência e retomada de nossa soberania. Sem dúvida foi uma imensa honra ter sido designada pelo presidente Rafael Correa Delgado para a comissão da Auditoria da Dívida Equatoriana (CAIC), para realizar a auditoria integral de sua dívida pública interna e externa, visando à busca da verdade sobre o endividamento público. Esse trabalho representou um desafio imenso, pois o decreto presidencial determinou a realização de uma auditoria dos últimos 30 anos do processo de endividamento, envolvendo a investigação de aspectos financeiros, contábeis, jurídicos e também seus impactos sociais e ambientais. Considerando que teríamos apenas um ano para realizar essa tarefa, a comissão foi subdividida em subcomissões que se dedicaram especificamente a cada tipo de endividamento: multilateral (dívida externa contratada com FMI, Banco Mundial, Corporación Andina de Fomento e outros organismos multilaterais); bilateral (dívida entre o Equador e outros países ou bancos públicos de outros países); comercial (dívida contratada com bancos privados internacionais) e interna.

Max Gimenes - O que foi apontado pela auditoria?

Maria Lucia Fattorelli - O resultado de todas as subcomissões apontou impressionantes ilegalidades e ilegitimidades verificadas em processos que sempre beneficiaram o setor financeiro privado, as grandes corporações e empresas privadas, em detrimento do Estado equatoriano e de seu povo, carente de tantos serviços públicos e de condições de vida digna, apesar das riquezas nacionais, como o petróleo. A sangria provocada pela dívida não permitiu que esses recursos servissem ao povo equatoriano. Uma das constatações mais importantes da comissão foi a incrível semelhança do processo de endividamento equatoriano com o brasileiro e o dos demais países latino-americanos. No caso da dívida externa comercial - com bancos privados internacionais de cuja investigação participei, a dívida atual representada por títulos Bonos Global é resultado do endividamento agressivo iniciado no final da década de 1970, durante a ditadura militar, majorado pela influência da elevação unilateral das taxas de juros pelo Federal Reserve a partir de 1979, por onerosas renegociações ocorridas na década de 1980, quando o Estado equatoriano assumiu inclusive dívidas privadas; seguido de renúncia à prescrição dessa dívida em 1992 e sua transformação em títulos negociáveis, denominados Bonos Brady em 1995, emissões de Eurobonos e nova transformação em Bonos Global em 2000. A dívida externa comercial equatoriana atual é fruto de sucessivas conversões equivocadas de uma mesma dívida que foi crescendo em função da alta de juros internacionais, assunção de dívidas pelo Estado, por seu valor nominal integral, inclusive dívidas privadas, processo que no Equador se denominou “Sucretización”.

Max Gimenes - Qual a relação com a dívida brasileira?

Maria Lucia Fattorelli - O endividamento externo comercial do Brasil seguiu passos idênticos, verificando-se a coincidência de datas, nomes dos convênios e dos títulos da dívida, termos e condições estabelecidas nos diversos contratos, além de interferência expressa do FMI; enfim, quando analisava os documentos do endividamento equatoriano parecia que estava lendo os mesmos documentos aos quais já tivemos acesso no Brasil durante os trabalhos da Auditoria Cidadã da Dívida. Diante de tantas semelhanças, o ideal é que os demais países também realizem auditoria de suas dívidas públicas, pois o endividamento tem sido um mecanismo contínuo, utilizado para sugar nossas riquezas e travar o desenvolvimento do nosso continente. Várias iniciativas estão se conformando a partir do primeiro passo dado pelo presidente Rafael Correa: o Paraguai já está realizando uma investigação oficial sobre sua dívida externa, e na última reunião da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América), em novembro de 2008, Venezuela e Bolívia também anunciaram a intenção de fazer a auditoria integral de suas dívidas. O Brasil poderia estar em outro patamar de justiça social e desenvolvimento econômico se a auditoria da dívida prevista na Constituição Federal de 1988 tivesse sido realizada. É uma lástima que nenhum dos governos, nesses vinte anos, tenha respeitado esse preceito fundamental.

Max Gimenes - O que é e como funciona na prática a auditoria de uma dívida?

Maria Lucia Fattorelli - Auditoria da dívida, em resumo, significa a investigação de todos os processos de contratação, renegociação, troca e rolagem de dívida pública – interna ou externa. A auditoria se dá com base na análise de documentos oficiais (contratos, títulos e correspondências oficiais, por exemplo) e registros existentes em livros de escrituração contábil, além de dados estatísticos e outras publicações existentes. A auditoria da dívida envolve também a análise de cifras (valores contratados/pagos; comparações entre o valor renegociado e o valor de mercado, comissões diversas, taxas de juros), estudo e análise da legislação de regência e outras questões jurídicas aplicáveis e, adicionalmente, visa à identificação dos participantes nos diversos processos relevantes.

* A entrevista completa foi publicada pela revista Caros Amigos, edição de julho de 2009.

Artigo - Conune


Sobre o Congresso da UNE e a hipocrisia da mídia

Por Márcio Moraes*

Entre os dias 15 e 19 de julho foi realizado o 51º Congresso da União Nacional dos Estudantes ao todo mais de 3.000 delegados (4 destes, eram da Belas Artes) de todos os cantos do país se credenciaram e tiveram direito a voz e voto neste Congresso. Como na maioria dos fóruns do movimento estudantil a organização não foi o forte o que prejudicou a participação dos estudantes nos 25 grupos de discussão. Além dos temas tradicionais do movimento de educação e estudantil (Reforma Universitária, regulamentação do ensino privado, universalização do ensino superior público de qualidade, cotas, ENADE) muitos debates das mesas de discussão versavam sobre temas candentes das relações internacionais como a crise econômica, financeira e ambiental, o golpe de estado em Honduras, integração latino americana, reintegração de Cuba a OEA e o fim do embargo a ilha caribenha.

Entretanto o grande destaque do Congresso girou em torno da campanha “O Pré Sal é nosso!” (que preconiza um novo marco regulatório para o setor, sobre controle estatal e defendendo que parte dos recursos advindos da exploração das novas reservas, sejam aplicados diretamente na educação) e a polêmica em torno do Patrocínio de R$ 100 mil da PETROBRÁS ao evento, os grandes meios de comunicação se apressaram em denunciar a capitulação da UNE frente ao governo federal -, observando que está é “chapa branca” ou governista como preferem as organizações mais á esquerda que são opositoras da direção majoritária da entidade – já que esse patrocínio expressaria a falta de independência da UNE. Nada mais hipócrita do que esse estardalhaço da grande mídia corporativa, é notório que todo ano essas empresas recebem milhões de reais dos Governo Federal, Estaduais e Municipais com a venda de espaços publicitários em suas TVs, rádios e revistas, em nenhum momento esses mesmos órgãos questionam, se as polpudas verbas publicitárias recebidas dos entes governamentais estariam por lhe tirar a famosa “independência” editorial em relação ao poder estatal, fica a impressão que até mesmo de forma messiânica o jornalismo brasileiro se auto-denomina à prova de influencias externas, seja de governos ou de lobbies empresariais, contudo esse discurso da independência como já foi dito nesse espaço de informação serve a certos interesses e construções ideológicas.

Não contente, a mídia, em diversas matérias, alerta para a mudança de postura da UNE, pois a entidade teria deixado de ser combativa, para ter uma abordagem passiva. Não é preciso ter muita memória para apontar a esquizofrenia do discurso das oligarquias que controlam os meios de comunicação do Brasil.

Aponta o passado combativo da UNE como exemplo, porém, esse padrão de comportamento nunca foi apoiado pelos grandes oligopólios da comunicação brasileira, pelo contrario estes dois entes da sociedade civil brasileira sempre estiveram em lados opostos. Lembrando um passado recente posso dizer que a mídia apoiou a “ditaduríssima” brasileira (não é, Folha de São Paulo?), a UNE combateu; a mídia escondeu a campanha das “Diretas Já”, a UNE foi pra rua pedir eleições democráticas para presidente do país; a mídia elegeu Fernando Collor, os estudantes pediram seu impeachment.

A UNE tem defeitos e eles são diversos, mas coadunar com o discurso hipócrita da mídia é servir aos interesses de quem sempre esteve contra o projeto de democratização do país. Recentemente a UNE se posicionou contra a medida do governo federal que prevê financiamento por parte do BNDES a instituições de ensino superior em dificuldades financeiras, curiosamente os meios de comunicação não ecoaram a posição de desacordo da UNE, por que será?



* Graduando do 8º semestre do Curso de Relações Internacionais Belas Artes

Artigo - Venezuela


Chávez e o significado de sua “macarronada bolivariana”


Max Gimenes *

O ano de 2009 começou de modo atípico. Com o estouro da bolha imobiliária estadunidense no segundo semestre de 2008, deflagrou-se a crise financeira, que mais tarde atingiria também a economia real, sendo considerada a mais grave desde a que eclodiu em 1929. Todos os países, sem exceção, estão sujeitos a pagar caro durante pelo menos este ano e o próximo pela irresponsabilidade da desregulamentação e especulação financeiras. Presidentes buscam combater a crise, implementando medidas de seu ideário, para ao menos atenuar os efeitos dela junto a suas bases de sustentação política.

Na Venezuela, não seria diferente. Não é de hoje que Hugo Chávez afirma estar construindo em seu país o que chama de “socialismo do século XXI”. A oposição, venezuelana ou não, nunca levou esse projeto muito a sério, acreditando na tese de que o atual período não passaria de uma aventura e que o país logo voltaria à normalidade. Ou seja, ao bom e velho neoliberalismo. A crise, no entanto, abalou tal vertente há muito dominante, a do famigerado “pensamento único”. E, sem querer, abriu novas perspectivas para a esquerda em todo o mundo, a despeito do despreparo que esta tem demonstrado até o presente momento para aproveitar essas oportunidades.

Hugo Chávez, no entanto, foi perspicaz e começou o ano dando prosseguimento a uma agenda nacionalizante na Venezuela. O episódio mais recente foi a ocupação e o anúncio da expropriação da multinacional estadunidense produtora de macarrão Cargill, acusada de descumprir a cota de produção com preço tabelado. Os “especialistas” consultados, liberais nada moderados em sua maioria, atacaram a política chavista de aumento da presença estatal na economia. Eles ainda são do tempo em que a orientação usual apontava para o enxugamento do papel do Estado e para a liberdade total ao setor privado. Deu no que deu, mas a mídia canarinho pouco aprendeu.

O tabelamento de preços existe na Venezuela devido à sua inflação, de cerca de 30% em 2008, a maior da América Latina. A inflação, de modo breve, significa uma alta substancial e continuada no nível geral dos preços, concomitante com a queda do poder aquisitivo do dinheiro. Segundo a explicação liberal, num mercado em que há livre concorrência a inflação existe quando a procura supera a oferta. É a chamada inflação de demanda. Admitamos, a princípio, a validade do pressuposto, deixando momentaneamente de lado a existência dos monopólios.

Para combater a inflação, seria preciso intervir em um dos lados da balança, a fim de restabelecer o equilíbrio entre procura e oferta. Historicamente, governos alinhados ao ideário neoliberal buscaram conter a demanda, implementando a chamada política de metas de inflação, em que crescimento econômico, empregos e salários são sistematicamente sacrificados e reduzidos para domar a inflação dentro da cerca que circunda o centro da meta.

Uma alternativa a isso seria aumentar a oferta, com investimentos em infraestrutura para a ampliação da chamada capacidade instalada. Assim, seria possível atender à demanda e ainda permitir a abertura de mais vagas de emprego, criando um círculo virtuoso de crescimento econômico capaz de permitir o combate à pobreza e a promoção de justiça social. Um governo socialista, ainda que sob o capitalismo, pode ser caracterizado justamente por esses objetivos: a construção de uma sociedade sem classes, em que não exista pobreza e desigualdade. Nela, os investimentos e a produção estariam a serviço do povo para atender a suas necessidades. Diferentemente do capitalismo, sistema em que os investimentos e a produção estão a serviço da busca pelo lucro, ainda que à custa de um enorme prejuízo social.

Se um governo promove melhoria nas condições de vida de sua população, principalmente nas daquela parcela com piores condições de vida, a procura por produtos no mercado aumenta, notadamente por produtos de primeira necessidade, como comida. Porém, ao mesmo tempo em que a procura aumenta, a oferta estaciona. Os investimentos capitalistas, orientados pela busca de lucro e não pela satisfação das necessidades das pessoas, diminuem. A possibilidade de lucros exorbitantes é ameaçada, logo o capitalista não se arrisca a investir. É coerente que não o faça e esperar o contrário é por demais ingênuo. Sem contar, é claro, o boicote ou sabotagem promovidos por uma parcela do empresariado que simplesmente não admite ver seus interesses serem contrariados.

Havíamos deixado de lado até aqui a questão do monopólio. Vamos a ela. Acontece que no fim do século XIX, após um processo de concentração e centralização do capital, deu-se uma mudança importante no caráter do capitalismo, que passou da livre concorrência para o regime de monopólio, cujo objetivo não é apenas o lucro, mas o lucro máximo (uma vez que ele tem o poder de determinar o preço de mercado das mercadorias). Essa nova qualidade do sistema, que tende a acirrar suas contradições internas, desembocou na crise de 1929. E pariu o que hoje chamamos de capital financeiro (fusão do monopólio industrial e bancário, sob o controle deste último, segundo o economista Rudolf Hilferding), que se consagrou com a busca incessante por lucratividade a partir da década de 1970, passado o incêndio apagado pelo Estado. Daí por diante, deu-se o fenômeno da financeirização da economia.

Deduz-se do que foi apresentado até aqui que, para combater a inflação neste momento de crise e rumar ao socialismo, a Venezuela não tem outra saída a não ser a de estatizar ao menos os setores estratégicos de sua economia no curto e médio prazos. Apesar de todo o ataque da mídia, as nacionalizações de Hugo Chávez são absolutamente coerentes e mostram a sua real disposição de cumprir as promessas que fez, concordemos com elas ou não, situação com a qual brasileiros certamente não estão acostumados. É também oportuno lembrar que o tal capital financeiro também incorporou meios de comunicação. Ou seja, a imprensa que brada contra nacionalizações não o faz senão para salvaguardar seus próprios interesses, travestindo-os de interesses do conjunto da sociedade.

Tratar uma questão tão séria com zombarias como a presente na expressão “macarronada bolivariana”, termo cunhado em matéria do jornal Folha de S.Paulo (o mesmo que criou a “ditabranda”), não contribui para o debate. O tempo de caça aos comunistas acabou, mas isso não significa que o sonho marxista tenha seguido o mesmo destino. A questão, fosse levada a sério, teria de ser tratada de modo mais claro e objetivo. Estatização não é fim, é meio. Para quê? Para assegurar, no caso, cimento a quem quer construir seu teto e alimentos a quem deseja saciar sua fome. E tudo isso a preços justos. É democratização, e não o contrário, como insinuam alguns pretensos paladinos das liberdades individuais.

A acepção de “macarronada bolivariana”, portanto, pode ser entendida unicamente como aquela que chega ao prato de todos, sem distinção de classe, cor, orientação sexual etc. Terrível assim. Ainda que tentem embaralhar os papéis e torcer a realidade para que o exemplo não seja seguido, não podem frear as transformações que de fato vêm ocorrendo em nosso continente, cansado de promessas vãs que não enchem barriga.

* é estudante de Ciências Sociais.

Resenha - O Amor Líquido


O Amor Líquido [Ou algumas considerações acerca do amor moderno]

Por Mauro Henrique Santos *

Este é um artigo que nunca gostaria de escrever e muito menos que fosse necessária a sua indicação. Não por uma possível inutilidade, mas sim por um desejo idealista meu de que o Amor, instância para mim superior, fosse sempre imaculado e não influenciado por qualquer coisa que esteja fora dele mesmo. Mas infelizmente, neste sentido, como disse Marx:
"O modo de produção dos bens materiais de existência determina necessariamente o processo de vida social, cultural e intelectual” [1].

Sendo o amor um fenômeno social e, portanto, construído historicamente, sofre influências desse mundo que se convencionou chamar de "pós-moderno" [2] e do modo de produção neoliberal, em que o "homem sem vínculos" [3] é eleito o nosso grande herói. Esse é o cerne do pensamento de Zygmunt Bauman, um dos nossos maiores sociólogos vivos, preocupação que pode ser vista melhor no seu livro, Modernidade Líquida e, em relação ao tema deste artigo, o Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos.

O conceito de líquido é uma retomada da célebre frase de Marx: "Tudo que é sólido se desmancha no ar" [4]; em que o filósofo critica a atuação da burguesia de substituir todas as relações que eram sólidas como, por exemplo, o amor e a família, que tanto ele como seu companheiro de produção Engels, dissertariam depois [5]. Bauman estuda essas novas características modernas de conceitos líquidos, fluidos e leves que surgiram em oposição às ideologias fortes, pesadas e sólidas.

"O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo."[6]

Outra característica deste mundo líquido é o final da crença de que podemos alcançar um Estado de perfeição no futuro, que, pensando assim, "excluem-se" os valores sociais enquanto mantêm-se os individuais, com o seguinte pensamento: "Já que um mundo próspero não é possível então para quê gastarmos nosso tempo com isso?" [7].

Mas não podemos compreender a liquidez de Bauman simplesmente relacionada ao vazio ou ao randômico, mas sim associada à leveza de Ítalo Calvino, nas Seis propostas para o próximo milênio, em que esta seria ligada à determinação e à precisão e neste enfrentamento de forças a liquidez deixa e leva marcas nesse fluir.

Neste sentido a liquidez é um sólido e o próprio autor afirma que a modernidade tem por característica o derretimento dos sólidos desde o seu princípio, mas como preparação para outros e novos sólidos. Podemos conferir que essa liquidez não está próxima do aleatório, mas sim do determinado e assim à leveza; aproximação que Bauman mesmo fez:

“Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-los como mais leves; menos “pesados” que qualquer sólido”.[8]

Para iluminarmos mais ainda estas passagens evoco Valery que, aliás, aparece em outra citação já no início do livro: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma” [9]. Em que expressa mais uma vez com clareza o exemplo da determinação precisa.

Voltando à questão do amor líquido que, neste livro, é estudado por Bauman nas suas várias possibilidades, como sendo: amor ao próximo, ao cônjuge ou nós mesmos. Na era globalizada, que a velocidade, seja de informações ou contato, é de extrema importância, tudo passa a ser encarado como mercadoria [10] e, o amor, como conceito, passa então a sofrer algumas modificações.

O homem criou ou se identificou em tribos, grupos, cidades, estados e etc., ou seja, necessita de relacionar-se, mas os relacionamentos modernos, segundo Bauman, são um dos valores mais ambivalentes; "pedimos" um relacionamento, mas ao mesmo tempo ansiamos para que seja leve.

Pelo ritmo veloz e influência da mídia não usamos frequentemente a palavra relacionamento, que soa excessivamente pesada, mas sim "conectar-se" expressão identificada com o mundo virtual onde outro modelo ilustra o mundo líquido: as redes. Sejam elas sociais ou de relacionamentos, como os conhecidos Orkut e MSN, pessoas se conectam umas às outras e conservam as suas redes, em que as conexões entre pessoas são feitas por escolhas tanto para conectar-se ou desconectar-se, tudo isso num ambiente de movimentos em que o compromisso pode fechar portas para novas conexões ou experiências. Observe o crescente número de pessoas que se proclamam de "relacionamento aberto" ou os "casais semi-separados", tudo isso para não diminuírem suas "possibilidades românticas" e também quando qualquer conexão começa a dar problema ou, às vezes, muito antes disso, a reação é, ao invés de se pensar em resolver o problema, tem-se a "vantagem" de desconectar, excluir, deletar ou simplesmente bloquear para outro momento oportuno ou um “nunca mais" que seja.

Além da velocidade e a noção de mercadoria, que juntas, tornam lícita e até mesmo justificam posições como o relacionamento aberto, em que, como numa aplicação na bolsa de valores, não titubeamos em vender uma ação quando ela está em baixa, da mesma forma, não hesitamos, segundo Bauman, de fazer o mesmo quando aparece uma nova possibilidade de "conexão" aparentemente mais lucrativa que a nossa atual. Este livro de Bauman não é uma coleção de formulas de sucesso para o amor (isso é coisa para os livros de auto-ajuda!) nem de como conservá-lo, mas ele traça um panorama definido sobre o momento único que vivemos, em que nunca houve tanta liberdade e facilidade na escolha de nossos parceiros - no sentindo de ser possível a possibilidade -, no entanto, isso nos remonta a um cenário dramático de incertezas, pois não sabemos se queremos ou não sair dessa situação [11], que é o que faz o autor não ter um prognóstico definitivo sobre o nosso rumo. Isso revela o que, Gioconda Bordon, disse, certa vez sobre o livro [12]:

"A sociedade neoliberal, pós-moderna, líquida, para usar o adjetivo escolhido pelo autor, e perfeitamente ajustado para definir a atualidade, teme o que em qualquer período da trajetória humana sempre foi vivido como uma ameaça: o desejo e o amor por outra pessoa."

Não estou generalizando ou tendo uma visão pessimista do amor, que como disse no início, e ainda continuo com essa posição, é de uma instância superior, mas uma observação muito atenta deste livro e mesmo do pensamento de Bauman, é necessária, pois o estágio atual do mundo e do amor moderno seja como negação, percepção e adesão, nos afeta.

Bom pensamento e bom ócio!

* é graduando em Letras na Universidade de São Paulo.
______________________
[1]. Karl Marx. A Ideologia Alemã. Boitempo, São Paulo, 2007.
[2]. Termo muito usado por pensadores como Jean-François Lyotard que, entre outras diz, que a era das grandes narrativas, os mitos e os grandes esquemas ou escolas de pensamento haviam chegado ao fim.
[3]. Esse é o héroi do livro de Roberto Musil, O Homem Sem Qualidades, que Bauman retoma.
[4]. Karl Marx. O Manifesto do Partido Comunista. L&PM, São Paulo, 2001. Esta frase também é o título de um bom livro de Marshal Berman que também estuda a modernidade.
[5]. Engels escreveu, por exemplo, A Origem da Família.
[6]. Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001. Pág. 8.
[7]. Antonio Candido, num belo especial dedicado aos seus 90 anos, ano passado, abordou o assunto alertando para o perigo que marca o final dessas grandes ideologias, marca da nossa época, em que pode ser iminente que surja um discurso ufano ou mesmo "religioso-além-mundano”, com bastante força.
[8]. Modernidade Líquida. pág. 8.
[9]. Ítalo Calvino. Leveza. In Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, São Paulo, 1990.
[10]. Karl Marx, no primeiro capítulo d’O Capital, já nos alertava para a característica burguesa de considerar tudo como uma mercadoria.
[11]. E talvez essa condição ideal nunca possa ser possível, pois Bauman diz adiante que "Todo amor é antropofágico” assim pode ser considerado como sendo um relacionamento por excelência "pesado" por mais que aspire à leveza.
[12]. Jornal Gazeta Mercantil, Caderno Fim de Semana, em 31 de julho de 2004

Artigo - O dólar


O papel do dólar como moeda de reserva internacional

Por Mariana Moura*

A crise é a mãe das possibilidades

A uma semana do encontro dos 20 países mais ricos do mundo – o chamado G-20 - o presidente do Banco Central da China, Zhou Xiaochuan, defendeu a reforma do sistema monetário internacional e propôs a substituição da moeda utilizada atualmente nas operações financeiras internacionais por uma que esteja “desconectada de interesses de um único país”.

A principal moeda utilizada em tais operações hoje é o dólar, moeda corrente dos Estados Unidos da América, e sua substituição é defendida também pelo Brasil, Índia e Rússia. Os Bric (termo cunhado pelo economista-chefe do Goldman Sachs, Jim O’Neill, em 2001 e que se refere aos quatro países que estão sustentando o mundo durante a crise), possuem reservas internacionais no valor de US$ 2,8 trilhões, segundo dados da Bloomberg.

Só a China tem US$ 1,97 trilhão em reservas, uma boa parte em títulos dos EUA. Em setembro do ano passado, a nação superou o Japão como o maior credor dos Estados Unidos, e em dezembro detinha US$ 727,4 bilhões em bônus do Tesouro – em dólar. Mas, a moeda dos Estados Unidos só tem perdido valor em relação às moedas dos países que detêm as reservas. Em um mês, o de abril, o real se valorizou 11,2%, o rublo, 6,9%, e a rúpia, 6,4%, em relação ao dólar.

E, ainda, não só o uso prioritário do dólar como moeda de reserva está dando prejuízo para estes países, como sustenta uma relação de dominação que já não é mais tão aceita.

“O privilégio de fornecer a divisa de reserva do mundo, o dinheiro que os países utilizam para efetuar negócios para além das suas fronteiras, é uma fonte de poder para o país que a controla mais valiosa do que a mais poderosa força militar. Uma vez que virtualmente todo dinheiro é criado ‘a partir do ar’ por meio de entradas em contabilidades bancárias, o país que fornece a divisa de reserva do mundo tem o poder de criar dinheiro suficiente para comprar o mundo”, afirmou o historiador Steven Lesh, em recente artigo (O 'soft power' dos EUA e os bancos).

A alternativa apresentada pela china é ampliar o uso dos Direitos Especiais de Saque (DES) emitidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Criados em 1969 por proposta do presidente francês Charles De Gaulle, os DES são aceitos hoje apenas para pagamentos entre governos e instituições internacionais. A proposta é que sejam usados também em operações de comércio e financeiras, como a precificação de produtos comercializados internacionalmente (commodities), investimentos e balanços contábeis.

O problema é que o valor dos DES é controlado pelos poucos países que mandavam no Fundo. Seu preço é definido pelo euro, o yen, a libra esterlina e (novamente e fundamentalmente) pelo dólar. Mantém a dependência.

O presidente do Banco Central chinês afirma, com propriedade, que, “teoricamente, uma moeda de reserva internacional deveria ser desconectada das condições econômicas e de interesses soberanos de um único país”. De um único país não pode, mas de apenas quatro sim?

* Graduanda do 6º semestre do Curso de Relações Internacionais Belas Artes

Resenha - A Revolução Venezuelana


Um retrato honesto da Venezuela

Igor Fuser *

Na lista dos demônios da mídia empresarial, o posto número 1 pertence, disparado, a Hugo Chávez, com sua boina vermelha e língua ferina. Raramente se passa um dia sem que alguma publicação da chamada "grande imprensa" despeje regulares doses de veneno contra o presidente venezuelano, apresentado como louco, fanfarrão, ditador ou incompetente. Essa cantilena se mantém há mais dez anos. Para ser exato, desde o início de 1999, quando o antigo coronel iniciou, após sua chegada ao governo, a transformação de um dos países de estrutura social mais iníqua no planeta – mais de 50% dos habitantes na miséria, em contraste com os lucros nababescos das exportações de petróleo – em uma referência mundial para todos os que cultivam os valores da justiça e da igualdade.

O livro de Gilberto Maringoni (A Revolução Venezuelana, Editora Unesp, 2009) merece ser saudado com um antídoto perfeito contra a manipulação informativa que, na imprensa brasileira, atingiu as raias de uma lavagem cerebral. Jornalista e historiador, Maringoni fala de um tema que conhece em primeira mão. Viajou várias vezes à Venezuela e lá entrevistou quase todos os nomes que valiam a pena no tumultuado enredo político local – dos caciques da oposição conservadora, como Teodoro Petkoff, às figuras mais graduadas do regime esquerdista, entre as quais o próprio Chávez, além das mais variadas fontes na esfera acadêmica.

Com dados confiáveis em mãos, o autor desvenda o enigma oculto sob a campanha midiática anti-chavista: como é possível que um caudilho supostamente tão desastrado mantenha altíssimos índices de apoio popular durante tanto tempo? É errado reduzir, como insistem os detratores da experiência venezuelana, o prestígio de Chávez à bonança petroleira da última década. A Venezuela já viveu outros períodos de alta dos preços do petróleo, sem que a população tivesse tido acesso a mais do que umas magras migalhas do banquete. A marca da gestão chavista é algo que as primeiras gestões municipais petistas defendiam no Brasil e que, lamentavelmente, diluiu-se no lodaçal dos compromissos com as classes dominantes: a inversão das prioridades em favor das multidões oprimidas, ainda que ao preço do confronto aberto contra as elites privilegiadas.

Na Venezuela, os gastos sociais aumentaram de 8,2% do PIB, em 1998, para 13,6% em 2006. Os índices de pobreza caíram de 55,1% para 27,5%. O salário mínimo se elevou numa escala sem precedentes em qualquer outro país do chamado Terceiro Mundo e milhões de venezuelanos passaram a ter acesso a uma infinidade de benesses antes inalcançáveis – desde serviços essenciais, como assistência médica e dentária, aos ícones do consumo descartável, como telefones celulares. Nesse cenário em que a mudança passa do plano da retórica para a existência cotidiana, torna-se fácil entender porque Chávez foi vitorioso em todas as freqüentes consultas eleitorais que promoveu, com apenas uma exceção.

O grande mérito de Maringoni é que ele não se limita a salientar as conquistas do processo político venezuelano, mas também aponta, sem medo de entrar em polêmica com os defensores mais entusiastas do chavismo, os limites do festejado "socialismo do século XXI". Concretamente: após dez anos de "revolução bolivariana", o velho modelo de desenvolvimento dependente latino-americano, erigido com base na exportação de produtos primários (no caso, o petróleo), permanece inalterado. Os ganhos desse modelo, é verdade, passaram a beneficiar, pela primeira vez, a maioria da população, sobretudo depois que Chávez retirou a estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA) das mãos da camarilha que a controlava, enquadrando a empresa sob o controle público. Mas o caminho ainda está no seu início: "O Estado continua ineficiente, lerdo, corrupto e avesso às interferências populares", escreve o autor.

Mesmo que seja prematuro falar em uma verdadeira revolução na Venezuela, é inegável que o governo de Chávez mudou a face política daquela sociedade e, em certa medida, de toda a América do Sul. A influência venezuelana se faz presente em todo um conjunto de países onde, pela primeira vez, o poder de Estado passa a ser exercido em benefício das maiorias. Como afirma Maringoni, referindo-se à época de ofensiva conservadora mundial pós-1989: "A Venezuela é, com todos os problemas, o país onde mais se avançou, nesse período, na contestação ao neoliberalismo e no questionamento do poder global dos Estados Unidos." Aí reside a explicação para o ódio que Chávez desperta entre os donos da mídia brasileira e internacional. Ele é, de fato, um sapo difícil de engolir.

* é jornalista, professor na Faculdade Cásper Líbero, mestre em Relações Internacionais, doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo e membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato, e ex-professor do curso de Relações Internacionais Belas Artes.

Imagem do Mês - Operação Pandemia


O pequeno documentário busca os interesses e os dados reais - para além do que é divulgado pela mídia - sobre a gripe causada pelo vírus Influenza A. vale a pena assistir:

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Nota da redação


(Não leia antes de ver o artigo “FEBEABA do Marconini” e os comentários a seu respeito)


Quando da publicação desta edição de O Diplomático, não imaginava eu que haveria tantas reações enérgicas ao artigo “FEBEABA do Marconini”. Pensei em postar simplesmente um comentário sobre a discussão, mas algumas colocações feitas dizem respeito não só à minha opinião mas também à minha atuação enquanto editor responsável por este espaço.

É difícil saber por onde começar, mas vamos lá. Explicarei como funciona o blog, em primeiro lugar, para evitar confusões:

O Diplomático é, como diz em seu cabeçalho, “uma publicação coletiva e democrática”. E há lá também a seguinte inscrição: “Blog dos alunos de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo”. Pois bem, o que isso significa? Significa que todos os alunos de RI da BA podem participar da publicação (enviando textos, participando das reuniões do Conselho Editorial etc.). Se o fazem ou não, é uma outra questão.

Aliás, acabo de me lembrar que existe um Projeto Editorial que orienta O Diplomático. Quem quiser saber mais pode solicitar uma cópia dele a qualquer um dos membros da gestão Nova Ordem Acadêmica. Este espaço é sério e o respeito a ele é uma exigência da qual não abro mão.

Como bem colocou Paulo Meirelles em seu comentário, os artigos assinados refletem a opinião do autor, e não necessariamente a opinião da BA ou do CA. O Marcio, como aluno, tem o direito de escrever o que quiser desde que isso não vá de encontro à nossa linha editorial, que preza pela tolerância e pelo respeito. Não encontro no texto em foco qualquer trecho que possa ser qualificado como desrespeitoso, vejo-o antes como um artigo crítico que se contrapõe a uma opinião divergente, ambas com razão de existir. E, como todo artigo, expressa a “opinião pessoal” de alguém, com o perdão da redundância.

Tudo isso para demonstrar que o artigo do Marcio foi publicado no lugar correto, ao contrário do que aventa o aluno Lucas Fazioli Fedele. Se foi um devaneio ou se foi expresso de forma inadequada, é outro debate, do qual tratarei mais abaixo, quando chegarmos ao mito da imparcialidade. O tempo em que havia censura em grande medida já se foi, embora alguns pareçam sentir saudades. O texto não será excluído e nenhum tipo de ingerência aqui será aceito, ao menos enquanto eu for o editor.

Se apenas foi publicada a opinião do Marcio sobre tal palestra, isso se deve ao fato de ele ter sido o único aluno a escrever e enviar um texto. Aproveito para deixar registrado que o outro artigo que seria publicado (geralmente são ao menos dois) não o foi porque quem havia ficado responsável por ele não o enviou. De quem estou falando? De um tal Filipe Matheus, por acaso o mesmo que agora aparece para comentar a postagem afirmando ser o Marconini uma personalidade “inquestionável”. Inquestionáveis não são nem mesmo os deuses, pois podemos questionar a existência ou não deles. Imagine um ser humano... Ora, por favor.

Mas a porta continua aberta, pois, ao contrário do que insinua o outro Lucas, o Parreira Lorini, não só publicamos o seu comentário inteiro neste espaço como também publicaríamos um artigo dele caso tivesse se dado ao trabalho de escrever um – interferimos apenas para fazer ajustes gramaticais e ortográficos e, como você parece escrever razoavelmente bem, não haveria tanto o que mexer. O seu questionamento sobre o espírito democrático dos que participam deste blog, no entanto, é inaceitável e demonstra total distanciamento seu em relação aos membros do CA. Como disse Voltaire (aproveitando que as citações estão em alta no fórum), “não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo”.

Enfim, sobre o papel do CA e do blog, tenho a dizer que não é nosso dever central divulgar uma boa imagem do curso, mas estimular a capacidade crítica e reflexiva de cada estudante, buscando elevar seu grau de consciência e conhecimento. Feito isso, uma boa imagem dos alunos e do curso é conseqüência. O caminho para isso não é sendo condescendente (ou, para ficar claro, “puxando o saco”) de poderosos em geral nem tampouco assumindo o papel de agência de publicidade da instituição, até porque ela já deve ter uma contratada. É preciso ir além.

Aviso: quem discorda da atual gestão pode se organizar e formar uma chapa para concorrer ao CA no fim do ano, mas não vale querer deslegitimar uma representação que, é importante lembrar, foi eleita com o apoio de cerca de 85% do corpo discente. Outro aviso: isso dá trabalho. Corre-se o risco de noites mal dormidas para levar ao ar uma publicação que depois, em minutos, pode ser achincalhada sem o menor rigor ou respeito. Ainda sim, acredito que valha a pena.

Colocado tudo isso, tratarei de outro ponto. Não assisti à palestra, mas como todos os “revoltados” espernearam sem negar que as falas preconceituosas do Marconini reproduzidas pelo Marcio são verdadeiras, me pautarei nisso para levantar alguns questionamentos. Além do que o companheiro Marcio possui uma excelente reputação, tem credibilidade no curso e é uma pessoa que goza da minha absoluta confiança. (E talvez ele veja um pouco além, Lucas, por estar no sétimo semestre... creio não ser à toa que ele ocupa a presidência do CA).

Infelizmente, não vou conseguir abordar tudo com o rigor e a minúcia que gostaria. De qualquer forma, pensemos.

Vi a existência de comentários absolutamente contraditórios. O primeiro Lucas diz que debater um artigo vai contra o seu bom-senso. Política não é futebol nem religião, meu caro, é algo racional que pode e deve ser debatido. Ele afirma que o Marcio disse asneiras e que sua visão é “obtusa”. O que pode ser mais obtuso e pobre do que dividir as opiniões políticas em certas ou erradas? Pois é isso que ele faz ao dizer ter sido “comunista convicto, até o dia em que me provaram estar errado”. Coitado.

O Diplomático não é imparcial. Causa choque a alguém essa afirmação? Pois não deveria causar a um universitário. Não existe imparcialidade nos veículos de comunicação, e os que dizem exercê-la nada mais estão fazendo do que vender a sua visão como se fosse a única possível ou verdadeira. Em jornalismo sério, fala-se de responsabilidade em relação às informações veiculadas e em honestidade de assumir seu ponto de vista de modo transparente. A atual gestão é composta majoritariamente de alunos de esquerda, e creio que isso não seja surpresa para ninguém, mas não é só. E não há sequer um extremista, tenham certeza.

Ao contrário do que disse o Lucas Parreira Lorini, a crise atual pode não ser conjuntural, mas estrutural. E será preciso escolher um modelo a seguir, que pode ser o da FIESP, de dar sobrevida a um sistema que explora muitos para assegurar o sossego de uns poucos. Projeto este que, como demonstrou a Operação Castelo de Areia da Polícia Federal, envolve muita corrupção, para manter longe do poder políticos que ousem desafiar o tal do status quo, ou seja, a ordem.

Outro projeto possível é o levado a cabo por tantos outros governos da América Latina, que têm como prioridade o povo (ausente da definição de Brasil de umdos Lucas). Venezuela e Bolívia têm analfabetismo hoje em torno de zero (segundo dados da ONU, antes que questionem). E a solução de outros problemas sociais avança. O povo passou a desempenhar algum papel, o Estado está se democratizando (muito embora a “grande mídia”, por estar a serviço de “grandes interesses”, tente demonstrar o contrário, criando um senso comum raso e falso, não permitido a alunos de RI que pretendam em algum momento da vida reivindicar a carreira de intelectual).

De fato, enquanto estudantes considerarem uma palestra em que um indivíduo diz que é preciso dar “uma cacetada” em outro povo a melhor de um evento o país não irá muito longe mesmo. (E, conhecendo o professor Sidney, sei que a atividade com Marconini foi a exceção, jamais a regra, da Semana Diplomática.)

Para mim, fica a pergunta: e se o Marcio tivesse chamado de “elefante bêbado” o Marconini? Por muito menos, Marcio foi acusado de uma série de coisas, inclusive de ser “arrogante”, justamente por alguém que em seu comentário desrespeitou outrem – no caso, Lucas Fedele foi arrogante com Marcelo, segundo a acepção que ele mesmo encontrou no dicionário para a palavra. Aliás, ele se diz contra cercear a expressão das opiniões, mas sugere a retirada do texto do Marcio do blog. Ah, e ele fala também em “nível intelectual”...

Diz que vivemos em uma sociedade livre. Ande pela sua cidade e verá que essa liberdade não é a mesma para todos, aposto que muitos gostariam de fazer RI na BA, mas ou não podem pagar os “míseros” mil reais cobrados ou tiveram uma formação tão precária que sequer sabem o que significa “relações internacionais”. É isso a liberdade para você? Pois, para mim, não é.

Corro o risco de ser acusado de ser panfletário mesmo sem citar Marx (e esse é um critério absurdo), mas não me importo. O Filipe diz lamentar o artigo do Marcio. Pois eu lamento o fato de haver entre nós aqueles que agem como o escravo que, para agradar ao seu senhor, matava outro escravo. É preciso levantarmos a cabeça e identificarmos os problemas que acometem este país, e isso não se dará com estudantes brigando entre si, ainda mais com um grupo defendendo aqueles que são responsáveis em certa medida pelo estado em que se encontra o Brasil.

Max Gimenes

PS: Se por “sequazes” do Marcio entende-se “os comunistas”, ou alguma variação disso, sinto-me pessoalmente ofendido. Chamar de “gente estragada” aqueles que lutam por um outro mundo possível e necessário, com justiça social e onde todo ser humano possa ser verdadeiramente livre, é um disparate. Ninguém precisa concordar com o texto acima, aliás é saudável que não o façam sem antes refletir criticamente, mas tenham a certeza de que ele foi escrito com responsabilidade e honestidade. E, obedecendo a regra da transparência, declaro: eis aqui um comunista, que não esconde as suas convicções atrás da máscara de uma suposta "isenção" nem distorce a realidade para melhor atendê-las.

sábado, 25 de abril de 2009

Editorial


E eis que O Diplomático chega a sua quarta edição. E com novidades! A primeira é que este talvez seja o último número da publicação editado por mim, Max Gimenes, como o foram todos os anteriores. Para quem não sabe, estou com a matrícula trancada na Belas Artes pelo fato de, desde o início do ano, estar cursando Ciências Sociais na USP. É claro que eu fiz e continuo fazendo questão de colaborar com o CA, mas é razoável que este blog seja editado por alguém que esteja efetivamente matriculado no curso.

E esse alguém já existe, é a competentíssima Mariana Nunes de Moura Souza, aluna do sétimo semestre e que por acaso também atua profissionalmente na área de comunicação. Enfim, a partir de agora a Secretária de Comunicação do Centro Acadêmico de Relações Internacionais Benário Prestes é ela! Com isso, Mariana passa a ocupar também uma das sete vagas do Conselho Editorial de O Diplomático, assim como Aline Ossani, estudante do terceiro semestre, que se tornou Secretária de Movimentos Sociais no lugar do Yuri, que há algum tempo abandonou a gestão Nova Ordem Acadêmica.

A segunda novidade é que, para que esse período de transição ocorra sem maiores problemas, O Diplomático tornou-se uma publicação bimestral. A próxima edição, de maio/junho, será já provavelmente editada pela Mariana, mulher que pode certamente levar este blog em frente com qualidade literária e espírito crítico.

A seção Bate-papo Internacionalista abaixo traz um trecho de uma entrevista com a filósofa Marilena Chaui, gentilmente liberado pela revista CULT para nossa publicação. O único artigo desta edição, casado com a seção Imagem do Mês, foi escrito pelo presidente do CA, Marcio Moraes do Nascimento, e versa sobre a opinião deste acerca da participação de Mario Marconini na Semana Diplomática, que ocorreu de 13 a 17 de abril na BA.

A parte final desta edição, Resenhas, também tem novidades: a opinião sobre dois livros foram trazidas. Aline Ossani, aluna do terceiro semestre, escreveu sobre O menino do pijama listrado, de John Boyne (Cia. da Letras, 2007), obra que aborda o nazismo e o marcante período da II Guerra Mundial. E eu escrevi sobre O Massacre, de Eric Nepomuceno (Planeta, 2007), ótima referência para quem busca entender os conflitos em torno da questão da terra no Brasil e o porquê do chamado “Abril Vermelho” promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Enfim, a última enquete perguntou aos visitantes do blog quem eles gostariam de ver dando uma Aula Magna. 39% escolheram “Paul Singer”, que foi seguido de perto por “Ceso Lafer”, apoiado por 31%, enquanto apenas 7% manifestaram-se a favor de “Cristovam Buarque” (nome aqui grafado corretamente, em vez de “Cristóvão”, como havia saído na edição anterior). Entre as outras opções, que admitiam a escolha de mais de um nome, 17% escolheram “Celso Lafer ou Paul Singer, mas não Cristovam Buarque” e 9%, “Cristovam Buarque ou Paul Singer, mas não Celso Lafer”. 1% foi indiferente, e as alternativas “Celso Lafer ou Cristovam Buarque, mas não Paul Singer” e “Nenhum” tiveram ambas 0% dos votos. Desta vez O Diplomático quer saber a sua opinião sobre o caso Cesare Battisti. Participe!

E tenham todos uma boa leitura!

O Editor

Agenda Diplomática


Este é o espaço dedicado às atividades do mês a que todos nós devemos estar atentos. Aproveitando o potencial de interação que um blog oferece, a Agenda Diplomática será um espaço sempre em construção, que cada um poderá completar por meio de comentários e/ou e-mails. Fiquem à vontade!

-> Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais (ENERI)
De 30/4 a 3/5 na ESPM

-> III Encontro de Mulheres Estudantes
De 1º a 3 de maio em MG


Qualquer dúvida, deixe um comentário!

Bate-papo Internacionalista

Entrevista a Juvenal Savian Filho e Eduardo Socha, para a revista CULT

Refrear, neste caso, uma declaração talvez mais entusiasmada seria um gesto insensato: Marilena Chaui é, sob vários aspectos, uma das personalidades mais admiráveis do país. Pois não basta dizer que sua trajetória como educadora se confunde com a própria difusão da filosofia universitária no Brasil. Essa constatação, evidente quando se observa a formação de nossos departamentos de filosofia, deriva de apenas uma das linhas de atuação da pensadora. Sua ativa participação nas discussões sobre os rumos da educação brasileira atestam a continuidade do engajamento, que vai além dos muros universitários da FFLCH-USP, onde leciona há 40 anos. Comprovando que também é possível romper com a elitização do ensino de filosofia sem abandonar o rigor que caracteriza a verdadeira atitude filosófica, seu livro Convite à filosofia tornou-se uma introdução surpreendente ao filosofar e referência praticamente obrigatória para o ensino médio.

Em razão de sua militância no campo político-partidário - outra linha de atuação -, seu nome hoje integra o panteão dos intelectuais que forneceram as coordenadas teóricas para a consolidação da democracia em nossa história política recente. Membro fundador do PT, teve experiência no Poder Executivo como secretária de Cultura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina; experiência esta que, segundo a própria filósofa, requisitava um jogo de cintura incompatível com o princípio de autonomia da atividade intelectual, esta sim sua vocação declarada. Distante do Executivo, não deixou porém de atuar como conselheira e porta-voz dos ideais emancipatórios e democráticos dos diversos movimentos de esquerda.

Como se não bastasse, sua pesquisa acadêmica, voltada à filosofia de Espinosa e de Merleau-Ponty, marcada pela interpretação austera dos textos, pelo respeito filológico ao "espírito de letra" dos pensadores, conquistou o reconhecimento nacional e internacional. Distinções como a Ordre des Palmes Académiques, conferida pela Presidência da República francesa (1992), e os dois títulos de doutorado honoris causa, um pela Universidade de Paris 8 (2003), outro pela Universidade de Córdoba (2004), são exemplos que por si testemunham o alcance notável de sua produção.

Sim, claro, existem os críticos de seu trabalho. Mas, infelizmente, poucos merecem ser ouvidos ou lidos. Dizemos infelizmente, porque o primitivismo e a esterilidade de grande parte dessa crítica confirmam a precariedade intelectual de nossos debates, de nosso atual estado de coisas. A tais críticas, que tão logo expoem suas fissuras de raciocínio, caberia apenas o riso da indulgência não fosse o espaço midiático que ocupam, não fosse a agressividade de suas manifestações, o preconceito, o ressentimento e o desvirtuamento rasteiro; as atitudes lamentáveis que afinal determinam o modus operandi de uma parcela da direita brasileira.

Na entrega do honoris causa pela Universidade de Paris, disseram: "Para alguns, a filosofia é uma carreira universitária. Para outros, mais raros, ela é um combate. Era, certamente, o caso de Espinosa. E é também, sem dúvida, o de Marilena Chaui". Talvez isso explique a resistência e a polivalência da pensadora em um país com tantas adversidades. Talvez isso justifique também o espírito enérgico pelo qual manifesta suas convicções na educação, na política, em sua pesquisa acadêmica. Mas o segredo maior parece ser o apreço pelo tempo necessário à reflexão. Na mesma cerimônia, Claude Lefort lembrou que a eloquência e a rapidez de sua inteligência não ocultam paradoxalmente o traço que melhor caracteriza a filósofa: a paciência do pensamento.

Marilena prepara atualmente o segundo volume de A nervura do real, continuação de sua obra sobre política em Espinosa. Nesta entrevista, concedida à CULT, a filósofa fala sobre a atual crise financeira, a popularidade do governo Lula, a inclusão da filosofia no ensino médio e também sobre sua trajetória de vida.

CULT - Diante da crise, a senhora acredita que estamos vivendo um momento histórico privilegiado para a reorganização da esquerda, para a reavaliação de seu conteúdo programático, para novas formas de mobilização popular? Ou a oportunidade será absorvida pelo redemoinho ideológico do liberalismo, agora em versão "light", de caráter mais keynesiano?

Marilena Chaui - Penso que as duas possibilidades estão dadas. Considero este um momento privilegiado, pois o fim do neoliberalismo (e não do capitalismo, claro!) abre um campo de reflexões novas para a esquerda e, uma vez que as atenções da economia e das políticas governamentais se voltam novamente para a esfera da produção e do trabalho (aquilo que significativamente os economistas agora chamam de "economia real"), também se abre um campo para práticas de classe por parte dos trabalhadores, assim como se torna possível o reaparecimento de movimentos sociais dirigidos aos direitos econômicos, sociais e políticos.

Pois está colocada em questão a operação própria do neoliberalismo, qual seja, a de dirigir todos os recursos públicos para os interesses do capital, levando à privatização dos direitos sociais, ao transformá-los em serviços privados a serem adquiridos no mercado. O pensamento e a práxis se abrem porque a percepção da irracionalidade do mercado desmantela a crença em sua suposta racionalidade autônoma, crença que durante 30 anos assegurou a hegemonia ideológica do chamado "pensamento único".

Ou seja, quando se fala em "economia real" para se referir à esfera da produção, o que se anuncia é a retomada da discussão do núcleo do modo de produção capitalista, isto é, o valor produzido pelo trabalho, e havia sido justamente isso que o monetarismo neoliberal julgara ter liquidado para sempre ao supor que poderia tratar o capital como moeda e não como resultado do processo de trabalho.

Sem dúvida, a abertura do tempo histórico será um processo longo e difícil e por isso mesmo, a curto prazo, irá prevalecer a tentativa de um neoliberalismo moderado, temperado com idéias keynesianas. Porém, o simples fato de vermos os governos e partidos de direita propondo medidas de cunho social-democrata já indica os limites da tentativa de manter o capital financeiro na direção da economia. Além disso, observa-se que as medidas econômicas e políticas colocam novamente na cena a figura do Estado nacional, que o "pensamento único" e a chamada globalização haviam decretado extinto.

Em outras palavras, não é tanto a figura do Estado nacional que importa aqui e sim o fato de que com ele reaparece a figura da sociedade civil, na qual se dá a luta de classes, que o neoliberalismo também considerava extinta. Não se trata de um retorno à situação anterior ao neoliberalismo - essa é a crença da direita, ao tentar dar um jeito numa política neoliberal com pitadas social-democratas - e sim de algo novo que, como tal, suscitará um pensamento novo e uma práxis nova. Em suma, o neoliberalismo, dirigindo os fundos públicos exclusivamente para o capital, se caracterizou pelo encolhimento do espaço público republicano e democrático e pelo alargamento do espaço privado dos interesses de mercado; seu fim, portanto, pode significar a reabertura do espaço público e o encolhimento do espaço privado.

CULT - A senhora disse que o governo atual "não é o governo dos nossos sonhos, não é exatamente da esquerda", que não teria o perfil de esquerda. Considerando, portanto, essa ambiguidade ideológica que se reflete na própria agenda do governo, a senhora acredita que políticas assistencialistas, além do carisma e da identificação popular do presidente, são suficientes para explicar sua boa avaliação?

MC - Sim e não. Sim, porque num país em que o corte de classe sempre definiu os governos, isto é, em que as políticas voltadas para os direitos sociais, políticos e culturais de todos os cidadãos nunca foram desenvolvidas ou, quando o foram, nunca foram prioritárias, em que as carências da maioria da sociedade sempre foram ignoradas em nome dos privilégios da minoria, as ações deste governo instituem práticas de inclusão sem precedentes na história do Brasil e, em grande parte, são responsáveis pela avaliação positiva do governo.

Não, porque a avaliação positiva do governo perpassa todas as classes sociais, indicando que há aprovação de outras ações governamentais, além daquelas voltadas para a transferência de renda e inclusão social; há aprovação da política externa, marcada pela independência, do PAC, da maneira como o Brasil sofrerá menos que outros os efeitos da crise financeira etc.
Penso também que é preciso dar um basta à tentativa de caracterizar o governo e o presidente da República como populistas. O populismo (tal como concebido pela sociologia brasileira, já que o conceito não é homogêneo para todas as sociedades) é a política da classe dominante para exercer o controle sobre as classes populares e/ou sobre a classe média tanto por meio de concessão de benefícios pontuais quanto por meio da figura do governante como salvador e protetor.

Ora, todos esses traços estão ausentes no governo Lula: o atual presidente da República não pertence à classe dominante, não concede benefícios pontuais e sim assegura a instituição de direitos com os quais se institui uma democracia, consequentemente, a figura do governante não tem a marca da transcendência, necessária à dimensão salvífica e protetora do dirigente não democrático.

Aliás, um dos pontos mais caros à mídia, que serve como ponta de lança nos ataques dirigidos ao presidente, é exatamente sua condição de classe: um operário sem diploma universitário, que não fala várias línguas, que comete gafes em situações de etiqueta e cerimonial etc. Ou seja, a mídia entra em contradição consigo mesma quando junta populismo e presidente operário sem diploma universitário.

(...)

A íntegra da entrevista está disponível na edição de março da revista CULT.

Opinião Internacionalista + Imagem do Mês


Para ver o seu artigo publicado nesta seção, escreva para nós (novaordemacademica@gmail.com). Como assunto da mensagem, coloque a palavra “Opinião”.

O FEBEABA (Festival de Besteiras que Assola a Belas Artes) do Marconini

Por Marcio Moraes do Nascimento



Na semana do dia 13 a 17 de abril, foi organizada pela Coordenação do Curso de Relações Internacionais da Belas Artes a Semana Diplomática. Dentre todos os convidados me chamou a atenção a Palestra do Sr. Mario Marconini, representante da Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP) e que tinha como tema de sua exposição “A Crise e as suas Repercussões no Comércio Internacional”.

Infelizmente o palestrante se ateve de forma superficial ao tema, parecia não ter muito a dizer, e o pouco que disse a respeito não passou de um festival de obviedades, o que era de se esperar já que a atual crise põe em cheque muito dos interesses defendidos pelo palestrante e sua instituição.

É claro que para superar suas deficiências o Sr. Marconini apelou para as típicas e esperadas piadas de cunho fartamente preconceituoso. Seu principal alvo foram os governantes da América Latina. Falou de Hugo Chávez, de Cristina Kirchner, de Evo Morales, não sobrou pedra sobre pedra. Do presidente brasileiro, falou: “Parece um elefante bêbado”. Eu, cá com meus botões, pensei: o que vem a ser um “elefante bêbado”, será que alguém já viu um?

Outras pérolas do Sr. Marconini: “O Brasil deveria dar uma cacetada na Bolívia”; “ONGs de direitos humanos não podem protestar contra a OMC, virou moda”. Ouvindo esse Sr., lembrei-me do Stanislaw Ponte Preta e seu FEBEAPA (Festival de Besteiras que Assola o País). O palestrante transformou a noite em que participou da Semana Diplomática num FEBEABA (Festival de Besteiras que Assola a Belas Artes).

De forma desafortunada, não pude questionar o palestrante em relação a suas afirmações preconceituosas e obtusas, pareceu-me que as perguntas eram pré-estabelecidas e ninguém pôde fazer um questionamento mais incisivo.

Gostaria de dizer ao Sr. Mario Marconini que, mesmo representando um projeto de poder (o projeto de poder da FIESP, que se encontra explicitado nos relatórios da Operação Castelo de Areia da Polícia Federal) diametralmente oposto ao de diversos chefes de Estado da América Latina, isso não lhe dá o direito de desrespeitá-los de forma tão grosseira.

Suas frases de efeito arrancaram gracejos da platéia, porém essas teriam sido mais propícias se ditas num boteco e não num ambiente acadêmico, numa palestra para um público que aprende a respeitar os valores da democracia e da diplomacia. Dizer que o Brasil deveria dar uma “cacetada” na Bolívia contradiz completamente a nossa bela tradição diplomática, reconhecida no mundo inteiro com uma das melhores escolas da área.

Se me fosse permitido falar na ocasião, diria que as ONGs de direitos humanos exercem um papel importante já que os direitos humanos, sociais e trabalhistas são vilipendiados cotidianamente pelas transnacionais e pelo agronegócio, e que isso é um assunto que deve ser tratado em organismos como a OMC. Talvez ele relativizasse o que disse, me pareceu o tipo de pessoa que faz isso, daqueles que acreditam em “ditabrandas”.

Queria saber do palestrante por que, ao se referir à Bolívia, insinuou que esse país não tinha povo. Qual o motivo? Talvez pelo fato de o presidente dessa nação ser índio e seu povo ser majoritariamente de origem indígena? Lembrei-me de duas coisas: primeiro, do Cônsul boliviano que esteve na Belas Artes na Semana Diplomática de 2007 que, com humildade e simpatia, nos explicou os problemas sociais do país, fruto de anos de espoliação do povo por parte de governantes descompromissados com o bem-estar da população. E, segundo, que a FIESP deve apoiar as instituições congêneres do departamento de Santa Cruz de la Sierra, que a todo momento proclama o golpe, numa demonstração de fascismo político e desrespeito à vontade popular.

O Sr. Marconini considera o governo Lula de esquerda, e complementa: “Mesmo sendo de esquerda, eles não são protecionistas”. Primeiro, o Governo Lula não é de esquerda, no máximo é um governo de centro-esquerda, e olha que estou sendo bonzinho, pois na coalizão governista convivem partidos de centro-direita, sem contar o famigerado presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. E, segundo, queria saber de onde o palestrante tirou que a esquerda é protecionista, já li muita teoria de esquerda e nunca li uma coisa dessas. Ao contrário, a esquerda é internacionalista por essência, é só lembrarmos do velho Marx.

A conclusão que tenho de tudo isso é que não cabe no nosso curso, tão bem coordenado por uma pessoa que é referência moral e intelectual a todos os alunos de Relações Internacionais da Belas Artes, esse tipo de palestra.

Não sei se Mario Marconini sempre é assim ou se estava num dia ruim, talvez exasperado com as consequências da Operação Castelo de Areia. O que espero sinceramente é que o FEBEABA do Marconini nunca mais venha nos visitar.

Resenhas


Para ver a sua resenha de filme e/ou livro publicada nesta seção, escreva para nós (novaordemacademica@gmail.com). Como assunto da mensagem, coloque a palavra “Resenha”.

O menino do pijama listrado

Por Aline Ossani

Através do olhar de uma criança, John Boyne nos apresenta seu livro O menino do pijama listrado, no qual contrasta a inocência em meio ao ódio e o preconceito deixado pela história do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.

O conto se passa no complexo de Auschwitz, o maior entre os 2 mil campos de concentração e trabalhos forçados construídos pelos nazistas.

Bruno, o personagem principal, tem 8 anos e mora com seus pais e sua irmã em uma grande e confortável casa em Berlim. Seu mundo desmorona quando certo dia, ao chegar em casa, se depara com Maria, a empregada, arrumando suas coisas, até mesmo aquelas que ele escondia e não eram da conta de ninguém, pois estavam de mudança. Seu pai fora designado pelo seu chefe, o Fúria, para um trabalho em outra cidade.

Como característica de quase todos os homens, as mudanças despertam certos sentimentos de angústia e inquietações e, com Bruno, não foi diferente. Achou a nova casa pequena e se entristeceu por não ter vizinhos nem garotos de sua idade para brincar.

Uma visão da janela do seu quarto o intrigava. Avistava pessoas vestidas com as mesmas roupas, todos usavam pijama cinza listrado com um boné cinza na cabeça.

Movido por seu espírito aventureiro, Bruno saía para explorar os arredores da casa. Em uma de suas explorações se deparou com uma cerca que dividia sua casa do local para onde estavam indo as pessoas de pijama listrado. E também conheceu Shmuel, um garoto da sua idade com quem, a partir daquele dia, passaria a se encontrar e passar tardes e mais tardes conversando.

O destaque do livro é exatamente na construção dessa amizade livre de preconceitos em tempos de guerra. Os garotos não tinham conhecimento do marco da história em que viviam.

Bruno pensava que o outro lado da cerca era mais alegre e sempre insistia a Shmuel para que o levasse para lá. E não demorou para que isso acontecesse, mas ele se decepcionou com o que encontrou: pessoas tristes, magras, com olhos fundos e as cabeças raspadas. Viu também alguns soldados, que riam e seguravam armas. O que Bruno não imaginava era que essa sua aventura não teria volta.

Filho de um oficial nazista, o personagem principal é vítima dos meios de dizimação em massa dos quais o pai era o mandante. O ódio aos judeus dominava o pensamento nazista e estes viam a raça como a chave para o entendimento da história do mundo.

O livro choca seus leitores por tratar de maneira singela e surpreendente um fato que marcou e marcará a história para sempre.

Eric Nepomuceno, um jabuti*

Por Max Gimenes

Na noite do dia 29 de outubro do ano passado, em São Paulo, ocorreu a cerimônia de entrega das estatuetas da 50ª edição do Prêmio Jabuti, cujos vencedores já eram conhecidos desde o dia 23 do mês anterior. O concurso literário, um dos mais tradicionais e prestigiados do país, é organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que reúne diversas empresas do setor livreiro nacional.

Desde 1958, quando o prêmio foi idealizado pelo então presidente da CBL, Edgar Cavalheiro, os primeiros colocados de cada categoria recebem prêmios em dinheiro. Já as estatuetas são estendidas também aos segundos e terceiros lugares. E, nesta edição de 2008, é justamente um livro detentor de uma segunda colocação – na categoria de livro de reportagem – que merece nota, seja pela relevância do tema ou pela maestria com que foi escrito. Ou ainda pelo desejo manifesto do autor de ver a justiça sendo feita neste país em que ele tanto demonstra acreditar.

Trata-se de O Massacre – Eldorado do Carajás: uma história de impunidade (Planeta, 2007), de Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor respeitado por seu trabalho e pela coerência e retidão com que o desempenha. A obra, que conta com um belo projeto de miolo e de capa, traz fotos de Sebastião Salgado, fotógrafo mineiro reconhecido mundialmente por seu estilo singular de captar imagens e momentos, sem dúvida um dos mais respeitados repórteres fotográficos da atualidade, com atuação marcada principalmente por voltar suas lentes para a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, dos excluídos em geral.

Ao avançar pelas primeiras páginas de O Massacre, o leitor logo percebe a profundidade do mergulho que está prestes a dar na história contemporânea do Brasil – e também que está diante de um iminente clássico desta. Ao longo das cinco décadas de premiação do Jabuti, criadores e criaturas entraram para a história literária brasileira, como Jorge Amado, premiado na categoria romance da primeira edição do concurso por Gabriela, Cravo e Canela. Eric Nepomuceno, a seu modo, arrisca-se certamente a trilhar caminho semelhante.

Uma vez iniciada a leitura, embarca-se em uma viagem no tempo de cerca de onze anos. Chega-se à tarde do dia 17 de abril de 1996. O leitor é também levado a viajar no espaço – sem sair do lugar, é claro – rumo à região Norte do Brasil. Mais precisamente, até a margem da rodovia PA-150, a escassos quilômetros de Eldorado do Carajás, no local conhecido como Curva do S. Lá, uma marcha pacífica organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com cerca de 2500 trabalhadores oriundos da ocupação da fazenda Macaxeira, rumava para Belém a fim de levar suas reivindicações ao governo estadual. No caminho, porém, decidiram bloquear a estrada como forma de protesto ante o descaso das autoridades em relação às suas reivindicações, que incluía comida e ônibus para que chegassem à capital paraense.

A estrada seria desobstruída com brutalidade: cerca de 150 policiais militares – armados inclusive com itens alheios ao seu arsenal, como foices e carabinas – promoveram uma verdadeira matança, abrindo fogo contra uma multidão indefesa, em que havia até mesmo mulheres e crianças. Do lado dos sem-terra, dezenove foram os mortos e 69, os feridos – dos quais três viriam a falecer posteriormente em decorrência de complicações causadas pelos tiros. Isso sem contar os traumas psicológicos e os fantasmas da lembrança, que assombram até hoje os dias e as noites de grande parte dos sobreviventes. Do lado policial, onze foi o número de feridos, mas, ao contrário da versão que as elites locais ensaiaram sustentar à época, não houve confronto. Eric é categórico: essa classificação é um atrevimento, o que houve de fato foi uma carnificina premeditada, em que praticamente todos os mortos o foram com os mais macabros requintes de crueldade.

Do poder público, não haveria nada a esperar. Este tinha lado na trincheira. Foi do então governador do Pará que partiu a ordem para a ação da polícia. Os grandes proprietários de terra tinham muita influência nas decisões políticas, e os seus interesses eram os que prevaleciam. A relação era mesmo promíscua: os fazendeiros eram acusados ainda de ter criado um fundo para auxiliar a PM no combate aos sem-terra. Ao final do festival de horrores, conta-se, deram até festa para comemorar o “sucesso” da operação – no caso, tirar a vida dos dirigentes do movimento. Infelizmente, os assassinos teriam mesmo muito a comemorar.

Após dois inquéritos – um militar e um civil – e julgamentos obscuros, somente duas pessoas seriam condenadas: um coronel da PM e seu subordinado de maior patente. Ambos ficaram nove meses recolhidos em estabelecimentos da polícia. Hoje, estão em liberdade. De resto, estão todos livres, leves e soltos. Daí ser o livro de Eric indispensável. Segundo o próprio, ele não tem a intenção de revelar informações bombásticas, mas de recordar um evento brutal e de soprar as brasas desse trágico momento, para que as lembranças não virem cinzas mortas.

Apesar de hoje o MST reconhecer ter errado em sua avaliação – segundo Nepomuceno, os dirigentes achavam que as matanças haviam sido suspensas e que havia espaço para radicalização –, é possível fazer um balanço equilibrado e ponderar que resultados foram obtidos com a marcha: se, por um lado, ficaram os traumas e as famílias dilaceradas, por outro, o governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso foi levado a desocupar a Macaxeira, a instalar o assentamento e a mudar a sua política com relação à reforma agrária frente à pressão da opinião pública. O assentamento se estruturou, superou a agricultura de subsistência e é hoje referência na luta pela democratização da terra. Foi também do massacre que surgiu o chamado “Abril Vermelho”, jornada de ocupações promovida pelo MST no mês de abril para exaltar a resistência daqueles que perderam a vida lutando por dignidade. E, além disso, a partir de então o 17 de abril passou a ser o Dia mundial de Luta pela Terra.

Eric Nepomuceno levou cerca de três anos, do início de 2004 a junho de 2007, para nos presentear com essa bela obra. Consultou testemunhas, livros, processos, relatórios, boletins, inventários, dossiês, inquéritos, artigos, ensaios, jornais e revistas para reconstituir os fatos. Ele narra com altiva sensibilidade a peleja desses brasileiros desafortunados. Leva ao leitor o sofrimento e a angústia que seguramente imperaram na ocasião. Toca o coração daqueles brasileiros que têm respeito e amor pelo próximo. E toca também a mente daqueles que se recusam a achar aceitável que 1% da população concentre 46% das terras em suas mãos enquanto 10% não têm terra ou teto, segundo dados de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentados no livro. A situação, alarmante, em pouco mudou até hoje.

Uma breve pesquisa a respeito do motivo da escolha do jabuti como símbolo do prêmio nos traz uma reflexão bastante interessante. O jabuti seria o animal, de acordo com o folclore brasileiro, que se distingue pela paciência e pela tenacidade com que vence os desafios e, por essa razão, fora escolhido para representar a atividade de escritores, editores, livreiros e gráficos. O jabuti aceitaria sempre os desafios em que a vitória, de antemão, parece sorrir ao adversário, ilusão que logo se desfaz, pois o vencedor é o perseverante e pachorrento personagem do nosso folclore. “Diante do desafio, ele parece sempre sustentado pela convicção íntima de que será o vitorioso, não importam os obstáculos”, diz o site da CBL. Eric Nepomuceno simboliza, com mais propriedade do que qualquer outro premiado, as qualidades de um jabuti. Hoje, o triunfo parece sorrir aos autores do massacre. Escrever um livro que vai contra a corrente do poder estabelecido parece tempo perdido, mas não para Eric, que carrega dentro de si uma chama de esperança na conquista de dias melhores. Chama um tanto pertinaz, diga-se. Para a sorte de todos nós.

Alguns podem pensar que a jornada terminou no dia 20 de abril, quando as vítimas foram enterradas. Porém as cicatrizes continuam abertas. A busca por justiça não é movida por rancor, vingança ou revanchismo; estes sentimentos espúrios são a marca dos algozes. Uma sobrevivente, a certa altura, diz a Eric: “Eu queria esquecer o massacre, mas não dá. Quando a gente anda na rua, encontra sempre uma viúva, um outro mutilado, um órfão...”. Eric Nepomuceno discorre sobre um tema de relevância e atualidade inquestionáveis, imprescindível para o entendimento da nação em que vivemos. Ele mereceu ser premiado, sem dúvida, mas a melhor recompensa e reconhecimento que poderia almejar é a justiça. O prêmio veio rápido, é verdade. A justiça, no entanto, ameaça vir a passos lentos, talvez mais vagarosos até que os de um jabuti.


* Adaptado do portal Correio da Cidadania, originalmente publicado em novembro de 2008.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Editorial


Passado o Carnaval, agora o ano começa pra valer. Aulas, pesquisas, provas, trabalhos e muita vontade de riscar as folhas novas do caderno ou do fichário. E eis que chegamos à terceira edição de O Diplomático, que, apesar do pequeno atraso, continua uma publicação mensal e presente na vida de quem busca discutir as relações internacionais.

A ofensiva de Israel em Gaza cessou, mas o que os nossos leitores consideram ser o primeiro passo para uma negociação justa de paz ainda não ocorreu. A opção mais votada na enquete do mês passado, com 39%, dizia que “Israel deve retornar à sua fronteira original, menor do que a atual e que foi expandida após conflitos anteriores, como a Guerra dos Seis Dias”. Na seqüência, com 30%, ficou a alternativa que afirmava que “Israel deve interromper, imediatamente e sem impor condições, o bloqueio à Gaza, permitindo assim a entrada de alimentos, remédios e energia”. Empatadas em terceiro lugar, com 13%, aparecem as opções de que “Israel deve reconhecer a legitimidade do Hamas e parar de tentar matar todos os seus líderes” e “O Hamas deve reconhecer a existência do Estado de Israel e, dessa forma, parar de pregar a sua destruição". Por fim, 4% optaram por “O Hamas deve interromper o lançamento de foguetes unilateralmente e sem pré-condições”.

Como prometido por O Diplomático, trazemos nesta edição a cobertura da posse do recém-eleito presidente dos EUA, Barack Obama, feita por Paulo Meirelles, que esteve lá na terra do Tio Sam e assistiu ao megaevento com os próprios olhos. O outro artigo, também escrito por alguém que andou viajando por aí nas férias para estudar de perto as RIs, é de autoria de Ramon Bonifácio, e nos traz saudáveis questionamentos acerca da globalização e da inserção e importância do nosso continente nesse famigerado processo.

A entrevista deste mês, menos bombástica que a do mês passado, mas muito rica, foi feita com o ex-professor do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo Marcus Ianoni, que recentemente escreveu um artigo para o jornal Valor Econômico, dissecando sob a ótica da sociologia política a questão da elevada taxa de juros no Brasil. Aqui ele discorre sobre seu artigo e também, como não poderia deixar de ser, aborda os motivos de sua saída da Belas Artes.

Ao fim, há a imagem do mês, uma charge sobre a carnificina na faixa de Gaza, e a estréia de uma nova seção, chamada “Resenhas”. Nela, serão publicadas resenhas de filmes e livros, recém-lançados ou não, que de alguma forma possam contribuir para uma boa reflexão.

Bate-papo internacionalista

Entrevista a Max Gimenes

Em recente artigo publicado pelo jornal Valor Econômico (“A taxa de juros no Brasil: um caso de política”), o professor Marcus Ianoni, doutor em sociologia política, colocou em questão a alta taxa de juros praticada no Brasil. Aqui, ele fala mais a respeito do que chama de “sistema de captura” do Estado brasileiro e, conseqüentemente, de sua política econômica por rentistas e pelo setor financeiro.

Dizendo preferir “não comentar assuntos institucionais da Belas Artes”, ele conta também, mas bastante cautelosamente, o porquê de sua saída da instituição, o que certamente deixará saudades.

***

O Diplomático - Recentemente o senhor publicou um artigo no jornal Valor Econômico, no qual se propõe a analisar a alta taxa de juros no Brasil, atualmente a maior do mundo, sob a ótica da sociologia política, na qual o senhor é doutor, em vez de partir da perspectiva econômica convencional. É possível afirmar que a luta pela redução da taxa de juros é sobretudo política?
Ianoni - No artigo, procurei enfatizar um elemento explicativo para os juros altos no Brasil que, em geral, não é levado em conta pelos especialistas. Denominei esse elemento de “sistema de captura”, que é um elemento de natureza política. Isso não quer dizer que a única explicação para os altos juros no Brasil seja de caráter político, mas sim que a captura da política monetária dos grupos de interesse financeiro é um elemento explicativo muito importante para se entender o motivo pelo qual o Brasil tem sido um verdadeiro campeão mundial em juros reais elevados.

O Diplomático - No artigo, o senhor afirma que “a taxa de juros no Brasil é alta porque o Estado, especialmente por intermédio do Banco Central, está capturado por uma coalizão política na qual se destacam os rentistas e o setor financeiro”. Explique melhor para nós como funciona essa coalizão e de que modo ela capturou o Estado brasileiro e sua política macroeconômica.
Ianoni - Numa perspectiva sociopolítica, a coalizão que dá sustentação ao Estado, entendido enquanto “pacto de dominação”, não se reduz apenas às forças político-partidárias que compõem o presidencialismo de coalizão, que configura o sistema político-institucional de governo. A coalizão abrange também forças da sociedade civil e do mercado que dão sustentação, sob várias formas, ao pacto de dominação. Entre essas forças, destacam-se, sobretudo desde 1994, os rentistas e as finanças, que possuem grande poder de influência sobre a política macroeconômica, sobretudo, as políticas monetária, cambial e fiscal.

O Diplomático - Vivemos uma crise financeira global, de proporções ainda desconhecidas, que teve como uma de suas principais razões a falta de regulação econômica. Como regular a economia de acordo com o interesse da sociedade, em vez de deixar, como ocorre hoje, que os “regulados” interfiram nas decisões dos “reguladores” por meio de seus grupos de interesse e lobbies?
Ianoni - Isso passa por uma democratização da democracia, pela democratização do processo decisório público, para que ele não seja capturado por interesses de uma minoria plutocrática. No artigo, sugiro, por exemplo, a ampliação da composição do Conselho Monetário Nacional, hoje extremamente insulado, o que facilita a sua captura.

O Diplomático - Existe relação entre o lobby para que a regulação atenda aos interesses dos “regulados” e a corrupção de agentes públicos?
Ianoni - Lobby não é sinônimo de corrupção. O lobby é inerente às sociedade complexas, com economia de mercado, é uma expressão da organização de interesses. No entanto, grupos lobistas, articulados a agentes públicos, podem recorrer à corrupção para alcançar seus interesses.

O Diplomático - Voltando à questão do juro, é sabido que uma taxa de juros alta está intimamente ligada a outro tema espinhoso, o da dívida pública. Explique para nós essa relação e como a recém-criada CPI da Dívida pode ajudar o Estado brasileiro a se libertar dessa sangria de recursos.
Ianoni - No Brasil, parte significativa dos títulos da dívida pública estão vinculados à taxa de juros de curto prazo, cujo valor básico é estabelecido pela Selic. Sendo assim, o aumento da Selic impacta no aumento do estoque da dívida pública indexada aos juros regulados pelo COPOM, órgão do Banco Central.

O Diplomático - Nesse cenário de captura do Estado brasileiro, como ampliar a participação da sociedade civil nas decisões sobre política econômica e impedir que os grupos de interesse do setor financeiro consigam avançar na contramão e aprovar, por exemplo, a autonomia do Banco Central?
Ianoni - O Banco Central, de fato, tem autonomia operacional para implementar a meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional, com base no regime de metas de inflação. Creio que esse insulamento do Banco Central e do CMN deve ser reestruturado em duas frentes: 1) pela mudança no atual padrão de relação delegativo entre o Congresso Nacional e a autoridade monetária; 2) pela participação da sociedade civil no Conselho Monetário Nacional.

O Diplomático - Não seria possível deixar de questioná-lo sobre sua saída do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Conte-nos como se deu o processo de desligamento e o que o senhor tem feito desde que deixou a instituição.
Ianoni - Na verdade, minha opção não foi por sair especificamente da Belas Artes, foi por sair do ensino superior privado. Quero aprofundar-me na produção de pesquisa e de conhecimento e, pelas características do sistema de ensino superior no Brasil, essa função é fundamentalmente desempenhada pelo setor público. Continuo pesquisando, prestando concursos e aguardando a tramitação de meu pedido de bolsa para pós-doutoramento junto às agências públicas de fomento à pesquisa.

O Diplomático - Voltemos a uma pergunta feita ao ex-coordenador, Raimundo Vasconcelos, e ao supervisor acadêmico, Alexandre Estolano, para sabermos a resposta dessa vez pela ótica de um professor: a lógica de mercado, caracterizada por objetivar principalmente o lucro e de acordo com a qual o cliente tem sempre razão, atrapalha a autonomia dos professores e a promoção de uma educação de qualidade?Ianoni - O lucro, no ensino privado, não leva, necessariamente, à postura de dar sempre razão ao cliente. No entanto, concordo, com base no que pude observar até aqui, que essa tendência pró-consumidor tenha crescido nas práticas do ensino superior privado, o que não me parece uma boa estratégia, nem empresarialmente falando, nem para que a educação cumpra adequadamente sua função social.


O Diplomático - Quais são, em sua opinião, os pontos fortes e fracos do curso de RI da BA? Se pudesse deixar uma mensagem ao seus ex-alunos, qual seria?
Ianoni - Prefiro não comentar assuntos institucionais da BA, uma vez que já me desliguei dessa escola. Aos meus ex-alunos, diria: meus caros, valorizem o curso que vocês fazem, estabelaçam com seu curso de graduação uma relação séria, produtiva e voltada a uma visão de cidadania, de construção coletiva da sociedade nacional e internacional do século XXI!