Por Max Gimenes
Na noite do dia 29 de outubro do ano passado, em São Paulo, ocorreu a cerimônia de entrega das estatuetas da 50ª edição do Prêmio Jabuti, cujos vencedores já eram conhecidos desde o dia 23 do mês anterior. O concurso literário, um dos mais tradicionais e prestigiados do país, é organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que reúne diversas empresas do setor livreiro nacional.
Desde 1958, quando o prêmio foi idealizado pelo então presidente da CBL, Edgar Cavalheiro, os primeiros colocados de cada categoria recebem prêmios em dinheiro. Já as estatuetas são estendidas também aos segundos e terceiros lugares. E, nesta edição de 2008, é justamente um livro detentor de uma segunda colocação – na categoria de livro de reportagem – que merece nota, seja pela relevância do tema ou pela maestria com que foi escrito. Ou ainda pelo desejo manifesto do autor de ver a justiça sendo feita neste país em que ele tanto demonstra acreditar.
Trata-se de O Massacre – Eldorado do Carajás: uma história de impunidade (Planeta, 2007), de Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor respeitado por seu trabalho e pela coerência e retidão com que o desempenha. A obra, que conta com um belo projeto de miolo e de capa, traz fotos de Sebastião Salgado, fotógrafo mineiro reconhecido mundialmente por seu estilo singular de captar imagens e momentos, sem dúvida um dos mais respeitados repórteres fotográficos da atualidade, com atuação marcada principalmente por voltar suas lentes para a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, dos excluídos em geral.
Ao avançar pelas primeiras páginas de O Massacre, o leitor logo percebe a profundidade do mergulho que está prestes a dar na história contemporânea do Brasil – e também que está diante de um iminente clássico desta. Ao longo das cinco décadas de premiação do Jabuti, criadores e criaturas entraram para a história literária brasileira, como Jorge Amado, premiado na categoria romance da primeira edição do concurso por Gabriela, Cravo e Canela. Eric Nepomuceno, a seu modo, arrisca-se certamente a trilhar caminho semelhante.
Uma vez iniciada a leitura, embarca-se em uma viagem no tempo de cerca de onze anos. Chega-se à tarde do dia 17 de abril de 1996. O leitor é também levado a viajar no espaço – sem sair do lugar, é claro – rumo à região Norte do Brasil. Mais precisamente, até a margem da rodovia PA-150, a escassos quilômetros de Eldorado do Carajás, no local conhecido como Curva do S. Lá, uma marcha pacífica organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com cerca de 2500 trabalhadores oriundos da ocupação da fazenda Macaxeira, rumava para Belém a fim de levar suas reivindicações ao governo estadual. No caminho, porém, decidiram bloquear a estrada como forma de protesto ante o descaso das autoridades em relação às suas reivindicações, que incluía comida e ônibus para que chegassem à capital paraense.
A estrada seria desobstruída com brutalidade: cerca de 150 policiais militares – armados inclusive com itens alheios ao seu arsenal, como foices e carabinas – promoveram uma verdadeira matança, abrindo fogo contra uma multidão indefesa, em que havia até mesmo mulheres e crianças. Do lado dos sem-terra, dezenove foram os mortos e 69, os feridos – dos quais três viriam a falecer posteriormente em decorrência de complicações causadas pelos tiros. Isso sem contar os traumas psicológicos e os fantasmas da lembrança, que assombram até hoje os dias e as noites de grande parte dos sobreviventes. Do lado policial, onze foi o número de feridos, mas, ao contrário da versão que as elites locais ensaiaram sustentar à época, não houve confronto. Eric é categórico: essa classificação é um atrevimento, o que houve de fato foi uma carnificina premeditada, em que praticamente todos os mortos o foram com os mais macabros requintes de crueldade.
Do poder público, não haveria nada a esperar. Este tinha lado na trincheira. Foi do então governador do Pará que partiu a ordem para a ação da polícia. Os grandes proprietários de terra tinham muita influência nas decisões políticas, e os seus interesses eram os que prevaleciam. A relação era mesmo promíscua: os fazendeiros eram acusados ainda de ter criado um fundo para auxiliar a PM no combate aos sem-terra. Ao final do festival de horrores, conta-se, deram até festa para comemorar o “sucesso” da operação – no caso, tirar a vida dos dirigentes do movimento. Infelizmente, os assassinos teriam mesmo muito a comemorar.
Após dois inquéritos – um militar e um civil – e julgamentos obscuros, somente duas pessoas seriam condenadas: um coronel da PM e seu subordinado de maior patente. Ambos ficaram nove meses recolhidos em estabelecimentos da polícia. Hoje, estão em liberdade. De resto, estão todos livres, leves e soltos. Daí ser o livro de Eric indispensável. Segundo o próprio, ele não tem a intenção de revelar informações bombásticas, mas de recordar um evento brutal e de soprar as brasas desse trágico momento, para que as lembranças não virem cinzas mortas.
Apesar de hoje o MST reconhecer ter errado em sua avaliação – segundo Nepomuceno, os dirigentes achavam que as matanças haviam sido suspensas e que havia espaço para radicalização –, é possível fazer um balanço equilibrado e ponderar que resultados foram obtidos com a marcha: se, por um lado, ficaram os traumas e as famílias dilaceradas, por outro, o governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso foi levado a desocupar a Macaxeira, a instalar o assentamento e a mudar a sua política com relação à reforma agrária frente à pressão da opinião pública. O assentamento se estruturou, superou a agricultura de subsistência e é hoje referência na luta pela democratização da terra. Foi também do massacre que surgiu o chamado “Abril Vermelho”, jornada de ocupações promovida pelo MST no mês de abril para exaltar a resistência daqueles que perderam a vida lutando por dignidade. E, além disso, a partir de então o 17 de abril passou a ser o Dia mundial de Luta pela Terra.
Eric Nepomuceno levou cerca de três anos, do início de 2004 a junho de 2007, para nos presentear com essa bela obra. Consultou testemunhas, livros, processos, relatórios, boletins, inventários, dossiês, inquéritos, artigos, ensaios, jornais e revistas para reconstituir os fatos. Ele narra com altiva sensibilidade a peleja desses brasileiros desafortunados. Leva ao leitor o sofrimento e a angústia que seguramente imperaram na ocasião. Toca o coração daqueles brasileiros que têm respeito e amor pelo próximo. E toca também a mente daqueles que se recusam a achar aceitável que 1% da população concentre 46% das terras em suas mãos enquanto 10% não têm terra ou teto, segundo dados de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentados no livro. A situação, alarmante, em pouco mudou até hoje.
Uma breve pesquisa a respeito do motivo da escolha do jabuti como símbolo do prêmio nos traz uma reflexão bastante interessante. O jabuti seria o animal, de acordo com o folclore brasileiro, que se distingue pela paciência e pela tenacidade com que vence os desafios e, por essa razão, fora escolhido para representar a atividade de escritores, editores, livreiros e gráficos. O jabuti aceitaria sempre os desafios em que a vitória, de antemão, parece sorrir ao adversário, ilusão que logo se desfaz, pois o vencedor é o perseverante e pachorrento personagem do nosso folclore. “Diante do desafio, ele parece sempre sustentado pela convicção íntima de que será o vitorioso, não importam os obstáculos”, diz o site da CBL. Eric Nepomuceno simboliza, com mais propriedade do que qualquer outro premiado, as qualidades de um jabuti. Hoje, o triunfo parece sorrir aos autores do massacre. Escrever um livro que vai contra a corrente do poder estabelecido parece tempo perdido, mas não para Eric, que carrega dentro de si uma chama de esperança na conquista de dias melhores. Chama um tanto pertinaz, diga-se. Para a sorte de todos nós.
Alguns podem pensar que a jornada terminou no dia 20 de abril, quando as vítimas foram enterradas. Porém as cicatrizes continuam abertas. A busca por justiça não é movida por rancor, vingança ou revanchismo; estes sentimentos espúrios são a marca dos algozes. Uma sobrevivente, a certa altura, diz a Eric: “Eu queria esquecer o massacre, mas não dá. Quando a gente anda na rua, encontra sempre uma viúva, um outro mutilado, um órfão...”. Eric Nepomuceno discorre sobre um tema de relevância e atualidade inquestionáveis, imprescindível para o entendimento da nação em que vivemos. Ele mereceu ser premiado, sem dúvida, mas a melhor recompensa e reconhecimento que poderia almejar é a justiça. O prêmio veio rápido, é verdade. A justiça, no entanto, ameaça vir a passos lentos, talvez mais vagarosos até que os de um jabuti.
* Adaptado do portal Correio da Cidadania, originalmente publicado em novembro de 2008.
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