segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Resenha - O Amor Líquido


O Amor Líquido [Ou algumas considerações acerca do amor moderno]

Por Mauro Henrique Santos *

Este é um artigo que nunca gostaria de escrever e muito menos que fosse necessária a sua indicação. Não por uma possível inutilidade, mas sim por um desejo idealista meu de que o Amor, instância para mim superior, fosse sempre imaculado e não influenciado por qualquer coisa que esteja fora dele mesmo. Mas infelizmente, neste sentido, como disse Marx:
"O modo de produção dos bens materiais de existência determina necessariamente o processo de vida social, cultural e intelectual” [1].

Sendo o amor um fenômeno social e, portanto, construído historicamente, sofre influências desse mundo que se convencionou chamar de "pós-moderno" [2] e do modo de produção neoliberal, em que o "homem sem vínculos" [3] é eleito o nosso grande herói. Esse é o cerne do pensamento de Zygmunt Bauman, um dos nossos maiores sociólogos vivos, preocupação que pode ser vista melhor no seu livro, Modernidade Líquida e, em relação ao tema deste artigo, o Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos.

O conceito de líquido é uma retomada da célebre frase de Marx: "Tudo que é sólido se desmancha no ar" [4]; em que o filósofo critica a atuação da burguesia de substituir todas as relações que eram sólidas como, por exemplo, o amor e a família, que tanto ele como seu companheiro de produção Engels, dissertariam depois [5]. Bauman estuda essas novas características modernas de conceitos líquidos, fluidos e leves que surgiram em oposição às ideologias fortes, pesadas e sólidas.

"O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo."[6]

Outra característica deste mundo líquido é o final da crença de que podemos alcançar um Estado de perfeição no futuro, que, pensando assim, "excluem-se" os valores sociais enquanto mantêm-se os individuais, com o seguinte pensamento: "Já que um mundo próspero não é possível então para quê gastarmos nosso tempo com isso?" [7].

Mas não podemos compreender a liquidez de Bauman simplesmente relacionada ao vazio ou ao randômico, mas sim associada à leveza de Ítalo Calvino, nas Seis propostas para o próximo milênio, em que esta seria ligada à determinação e à precisão e neste enfrentamento de forças a liquidez deixa e leva marcas nesse fluir.

Neste sentido a liquidez é um sólido e o próprio autor afirma que a modernidade tem por característica o derretimento dos sólidos desde o seu princípio, mas como preparação para outros e novos sólidos. Podemos conferir que essa liquidez não está próxima do aleatório, mas sim do determinado e assim à leveza; aproximação que Bauman mesmo fez:

“Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são mais pesados que muitos sólidos, mas ainda assim tendemos a vê-los como mais leves; menos “pesados” que qualquer sólido”.[8]

Para iluminarmos mais ainda estas passagens evoco Valery que, aliás, aparece em outra citação já no início do livro: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma” [9]. Em que expressa mais uma vez com clareza o exemplo da determinação precisa.

Voltando à questão do amor líquido que, neste livro, é estudado por Bauman nas suas várias possibilidades, como sendo: amor ao próximo, ao cônjuge ou nós mesmos. Na era globalizada, que a velocidade, seja de informações ou contato, é de extrema importância, tudo passa a ser encarado como mercadoria [10] e, o amor, como conceito, passa então a sofrer algumas modificações.

O homem criou ou se identificou em tribos, grupos, cidades, estados e etc., ou seja, necessita de relacionar-se, mas os relacionamentos modernos, segundo Bauman, são um dos valores mais ambivalentes; "pedimos" um relacionamento, mas ao mesmo tempo ansiamos para que seja leve.

Pelo ritmo veloz e influência da mídia não usamos frequentemente a palavra relacionamento, que soa excessivamente pesada, mas sim "conectar-se" expressão identificada com o mundo virtual onde outro modelo ilustra o mundo líquido: as redes. Sejam elas sociais ou de relacionamentos, como os conhecidos Orkut e MSN, pessoas se conectam umas às outras e conservam as suas redes, em que as conexões entre pessoas são feitas por escolhas tanto para conectar-se ou desconectar-se, tudo isso num ambiente de movimentos em que o compromisso pode fechar portas para novas conexões ou experiências. Observe o crescente número de pessoas que se proclamam de "relacionamento aberto" ou os "casais semi-separados", tudo isso para não diminuírem suas "possibilidades românticas" e também quando qualquer conexão começa a dar problema ou, às vezes, muito antes disso, a reação é, ao invés de se pensar em resolver o problema, tem-se a "vantagem" de desconectar, excluir, deletar ou simplesmente bloquear para outro momento oportuno ou um “nunca mais" que seja.

Além da velocidade e a noção de mercadoria, que juntas, tornam lícita e até mesmo justificam posições como o relacionamento aberto, em que, como numa aplicação na bolsa de valores, não titubeamos em vender uma ação quando ela está em baixa, da mesma forma, não hesitamos, segundo Bauman, de fazer o mesmo quando aparece uma nova possibilidade de "conexão" aparentemente mais lucrativa que a nossa atual. Este livro de Bauman não é uma coleção de formulas de sucesso para o amor (isso é coisa para os livros de auto-ajuda!) nem de como conservá-lo, mas ele traça um panorama definido sobre o momento único que vivemos, em que nunca houve tanta liberdade e facilidade na escolha de nossos parceiros - no sentindo de ser possível a possibilidade -, no entanto, isso nos remonta a um cenário dramático de incertezas, pois não sabemos se queremos ou não sair dessa situação [11], que é o que faz o autor não ter um prognóstico definitivo sobre o nosso rumo. Isso revela o que, Gioconda Bordon, disse, certa vez sobre o livro [12]:

"A sociedade neoliberal, pós-moderna, líquida, para usar o adjetivo escolhido pelo autor, e perfeitamente ajustado para definir a atualidade, teme o que em qualquer período da trajetória humana sempre foi vivido como uma ameaça: o desejo e o amor por outra pessoa."

Não estou generalizando ou tendo uma visão pessimista do amor, que como disse no início, e ainda continuo com essa posição, é de uma instância superior, mas uma observação muito atenta deste livro e mesmo do pensamento de Bauman, é necessária, pois o estágio atual do mundo e do amor moderno seja como negação, percepção e adesão, nos afeta.

Bom pensamento e bom ócio!

* é graduando em Letras na Universidade de São Paulo.
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[1]. Karl Marx. A Ideologia Alemã. Boitempo, São Paulo, 2007.
[2]. Termo muito usado por pensadores como Jean-François Lyotard que, entre outras diz, que a era das grandes narrativas, os mitos e os grandes esquemas ou escolas de pensamento haviam chegado ao fim.
[3]. Esse é o héroi do livro de Roberto Musil, O Homem Sem Qualidades, que Bauman retoma.
[4]. Karl Marx. O Manifesto do Partido Comunista. L&PM, São Paulo, 2001. Esta frase também é o título de um bom livro de Marshal Berman que também estuda a modernidade.
[5]. Engels escreveu, por exemplo, A Origem da Família.
[6]. Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001. Pág. 8.
[7]. Antonio Candido, num belo especial dedicado aos seus 90 anos, ano passado, abordou o assunto alertando para o perigo que marca o final dessas grandes ideologias, marca da nossa época, em que pode ser iminente que surja um discurso ufano ou mesmo "religioso-além-mundano”, com bastante força.
[8]. Modernidade Líquida. pág. 8.
[9]. Ítalo Calvino. Leveza. In Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, São Paulo, 1990.
[10]. Karl Marx, no primeiro capítulo d’O Capital, já nos alertava para a característica burguesa de considerar tudo como uma mercadoria.
[11]. E talvez essa condição ideal nunca possa ser possível, pois Bauman diz adiante que "Todo amor é antropofágico” assim pode ser considerado como sendo um relacionamento por excelência "pesado" por mais que aspire à leveza.
[12]. Jornal Gazeta Mercantil, Caderno Fim de Semana, em 31 de julho de 2004

3 comentários:

  1. Realmente é uma ótima resenha.
    Quando começamos a falar em modernidade,a liquidez dos relacionamentos é um assunto de relevância.Observando as esferas de discussão na atualidade como família,educação,amor etc. nos deparamos com a difícil missão de construir um processo "investigativo",até mesmo filosófico questionando o por quê de tantos problemas.
    Zygmund Bauman,certamente,nos ajudará a entender estes processos em "Modernidade Líquica".Não como os livros de auto-ajuda fazem(como disse o autor da resenha),mas de maneira profunda.Não nos dando uma formula mágica para resolver problemas,mas tornando-nos protagonistas de nossas decisões.
    Com certeza eu leria "Modernidade Líquida".

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  2. Interessante como a frase escrita por Marx há mais de 150 anos no Manifesto Comunista continua atual, daí concluo que esse modo de produção estabeleceu esse padrão liquido na relação entre os entes da sociedade moderna.

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  3. Achei a resenha interessante. O livro também deve ser. Os sociólogos às vezes parecem malucos (e talvez sejam mesmo), mas são pessoas legais. E geralmente com contriuições a dar para quem deseja refletir sore o mundo em que vive.

    Bom, como o autor do texto mesmo cita, "O modo de produção dos bens materiais de existência determina necessariamente o processo de vida social, cultural e intelectual". No mesmo livro ("A ideologia alemã"), Marx fala que o capitalismo reduziu as relações entre os indivíduos ao simples interesse econômico. É duro e nada romântico, mas é o que ocorre. Basta que observemos. E o neoliberalismo só aprofundou essa "liquidez", essa falta de consistência, em que não há princípios, a não ser o do interesse material egoísta. De resto tudo é flexível e maleável.

    Além de bom pensamento e bom ócio (absolutamente necessários), recorro a Marx mais uma vez para acrescentar um ingrediente à essa receita: não é suficiente interpretar o mundo, cabe transformá-lo. O indivíduo, a despeito das limitações estruturais, é um agente. Boas atitudes!

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