sexta-feira, 26 de agosto de 2011

“Esta terra ainda vai cumprir seu ideal”



Nota dos Editores 1: Agradecemos ao Professor Beluce Belucci por nos autorizar a reproduzir o texto.
Nota dos Editores 2: A íntegra da matéria da Folha de S. Paulo citada no artigo está disponibilizada na nossa página de clipping: http://odiplomatico.blogspot.com/p/clipping.html.


Por Beluce Bellucci*
16/08/2011



A manchete do primeiro caderno da Folha de São Paulo de 14/08/2011 “Moçambique oferece ao Brasil área de 3 Sergipes”, para o plantio de soja, algodão e milho a agricultores brasileiros com experiência no cerrado, parece trazer uma grande novidade e oportunidade aos capitais e empreendedores brasílicos. A longa matéria no caderno de economia expõe que estas terras estão localizadas nas províncias de Nampula, Niassa, Cabo Delgado e Zambézia, situadas ao norte daquele país. No mesmo artigo, um consultor indaga, arrogante e desrespeitosamente, “Quem vai tomar conta da África? Chinês, europeu ou americano? O brasileiro que tem conhecimento do cerrado”, responde ele apressadamente. A intenção explicita de colonização nesta passagem não foi contestada pelo jornal ao longo do artigo.

Pela matéria, fazendeiros brasileiros afoitos descobrem que em Moçambique existe “um Mato Grosso” inteiro para ser produzido, e 40 deles (não haverá um Ali?) se “apressam” a no próximo mês visitarem o país. O ministro da agricultura moçambicano revela que as terras poderão ser cedidas por 50 anos, renováveis por mais 50, ao preço módico de R$27,00 por hectare/ano.

Cabe inicialmente perguntar: será esse negócio uma grande novidade? e trará tanta oportunidade quanto a noticia faz parecer? O desconhecimento dos brasileiros que procuram o empreendimento reflete o desconhecimento histórico que o Brasil tem da África e faz jus ao conhecimento dos que a divulgam. Não compete encontrar aqui as razões por que “tão boa oferta” somente agora chega ao Brasil nem tão pouco saber quem está por trás desse affaire. Interesses seguramente devem existir dos dois lados, o africano e o brasileiro.

Mas a quem pode NÃO interessar esse projeto?

A região em questão possui vegetação diversa onde vivem cerca de 12 milhões de pessoas organizadas em sociedades com histórias, línguas, culturas e formação social próprias. Estão lá os macuas, os macondes, os nyanjas, os chuabos e outros. Foi o principal palco da guerra de libertação nacional de 1964 a 1975, e nos anos 80 da guerra de desestabilização levada a cabo pela África do Sul e pela Renamo. É uma população de resistência e luta. E o que dizem do modelo desse projeto? Que impacto terá sobre essa população? O que pensam outras instituições locais? Quem efetivamente ganha e quem perde produzindo nesse modelo na região? Não falemos em aumento de PIB ou da exportação, mas em nível de vida, em ganhos palpáveis, materiais e imateriais da população.

A experiência que os fazendeiros brasileiros dizem ter no cerrado, e o jornal repete, é de produção técnica, não de relações sociais de produção. Ela não inclui a experiência no trato com as sociedades africanas, aliás, neste quesito perdemos para todos os outros concorrentes. O brasileiro não conhece e quase não sabe andar na África, pouco se interessou pelo continente, seguramente pelo complexo de culpa da escravidão. Foi preciso uma lei, a no. 10.639 de 9/2/2003, para introduzir essa temática nas escolas brasileiras. Só recentemente expandiu suas representações diplomáticas e vem ampliando a cooperação e presença, pese a demanda, interesse e simpatia que os africanos dirigiam ao nosso país. Mas enquanto ficamos ao longo do último século com retórica e boas intenções face aos africanos, pouco fizemos e conhecemos. Em três décadas de presença na África os chineses se tornaram os maiores parceiros do continente. Antes dos fazendeiros e homens de negócios estiveram os estudiosos, os diplomatas, os estrategistas. Desenvolveram planos de longo prazo e não chamaram as regiões de Shanxi ou de Sergipe. Conheceram a história e respeitaram a soberania dos Estados e seus povos. Muito pode-se criticar sobre a presença chinesa na África, menos que seja aventureira.

A “novidade” 


Todos afirmam que a África é hoje um continente subdesenvolvido, isto é, com carências alimentares, na habitação, na saúde, na educação, na capacidade produtiva, mas por quê? Como chegou a se subdesenvolver? Deixemos de lado o tráfico de escravos que mutilou sociedades por mais de três séculos (período que a força de trabalho africana era arrastada a produzir nas fazendas brasileiras – possivelmente em terras dos antepassados dos 40 fazendeiros) e nos aproximemos do século 20. O que fizeram os europeus, franceses, ingleses, portugueses e belgas na África? O que foi e como foi o colonialismo africano senão um fenômeno do século 20? Não foram lá essas metrópoles para civilizar e levar deus aos africanos? Não foram lá levar a civilização e ensinar-lhes como e o que produzir e consumir? E muito produziram... Mas como fizeram?

A colonização levada a cabo pelas potências foram entregues a companhias concessionárias (majestáticas ou à charte na França), que recebiam grandes concessões de terra em troca de pagamento de taxas ao estado colonial, na obrigação de produzirem, e para tal podiam explorar e gerir as populações residentes. Umas desenvolveram a agricultura de exportação (para as metrópoles que viviam a revolução industrial), e até integraram regiões com estradas e ferrovias para escoamento. Outras dedicaram-se à exportação de trabalhadores para as minas dos países vizinhos (caso da Companhia do Niassa). Muito se produziu e se exportou. Criaram-se fortunas com o amendoim, o copra, o algodão, o sisal, o café, o tabaco, a madeira... E onde estão estas riquezas? Nos palácios, estradas e infraestruturas africanas? No sistema de educação, saúde e no nível de alimentação da população negra? O povo africano trabalhou nesse século sob a batuta colonial. Produziu muito no sistema de concessão que agora se quer renovar, e foi esse modelo o que subdesenvolveu a África, trazendo para os africanos a miséria que vivem hoje. E é esse o modelo que agora se quer repetir. Antes dele os povos estavam em melhor situação que após.

Não são as terras fartas que chamam a atenção dos nossos fazendeiros, mas a existência de uma mão de obra que pode trabalhar a baixíssimos salários. Isso porque ela tem acesso à terra, já que boa parte da terra ainda é comunitária, e garante a própria subsistência. Enquanto esses homens trabalham nas fazendas, suas famílias produzem nas roças tradicionais. E, tendo a subsistência garantida, são impelidos ao trabalho quase gratuito, muitas vezes à força como demonstra a história, nas áreas dos fazendeiros brancos. Ao final do processo produtivo, a exportação, o PIB, os bolsos de poucos políticos e empresários nacionais envolvidos poderão crescer, mas a população continuará vivendo basicamente das suas subsistências e cada vez mais dependente de uma sociedade que a vem dominando culturalmente, através do radio e da TV, com canais globais e religiosos universais, cada vez mais produzidos aqui mesmo na tropicália. O contexto para um novo colonialismo está preparado, e a sua repetição transformará o que foi o drama colonial numa farsa liberal. Na versão colonial do século 20 as sociedades africanas encontravam-se ainda estabelecidas e foram fortemente exploradas nessa articulação com o capitalismo colonial, que a reduziram à pobreza atual. Hoje elas encontram-se fragilizadas, desconfiadas, famintas, e reeditar tal sistema com promessas e perspectivas de que irão melhorar é uma mentira criminosa.

Convém observar que a mudança desse modelo de exploração para o modelo desenvolvimentista, industrializante, com início no pós Segunda Guerra facilitou as propostas nacionalistas que culminaram com as independências das colônias na década de 60. Mas este assunto merece outro artigo.

O risco 


Dizem que as terras em Moçambique estão ociosas. Na verdade, estão ocupadas há séculos por populações que a cultivam com tecnologias específicas, para a sobrevivência, num sistema que exige grande reserva natural e rotação. Quando os portugueses chegaram no continente encontraram homens e mulheres saudáveis e fortes. Não eram povos subnutridos nem subdesenvolvidos, mas populações com níveis tecnológicos distintos dos colonizadores. Passados o tráfico e o colonialismo, o que restou foram populações desagregadas, famintas, subdesenvolvidas, fruto das políticas produtivistas de quem “tomou conta da região”.

O que nós brasileiros queremos com a África? Mandar para lá fazendeiros para remontarem um sistema já conhecido historicamente e vencido socialmente, que produz e reproduz miséria para a grande maioria e lucro para poucos? Ou temos a intenção e alguma expectativa de estabelecer uma relação de cooperação que aponte para uma sociedade onde a vida das pessoas se transformem e melhorem?

O embaixador moçambicano em Brasília diz que “interessa-nos ter brasileiros em Moçambique produzindo, porque temos grande deficit de alimentos”, e o projeto prevê que será preciso empregar 90% de mão de obra moçambicana. A oferta é para produzir algodão, soja e milho, entre outros, visando a exportação. Sendo o milho o único atualmente utilizado para alimento humano. A Embrapa prepara as sementes com investimentos do Estado brasileiro, e o presidente da Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão diz que “Moçambique é um Mato Grosso no meio da África, com terra de graça, sem tanto impedimento ambiental e frete mais barato para a China”. O chefe da Secretaria de Relações Internacionais da Embrapa diz: “Nessa região, metade da área é povoada por pequenos agricultores, mas a outra metade é despovoada, como existia no oeste da Bahia e em Mato Grosso nos anos 80.” O projeto oferece também isenção para a importação de equipamentos.

O que pretende este programa é aproveitar as terras moçambicanas, “de graça”, produzir para exportação, aproveitando-se da mão de obra barata, e a ausência de regulamentação ambiental e sindical. Entretanto, sabe-se já de início, os projetos são de capital intensivo e grande tecnologia, e vão utilizar pouca mão de obra. Os produtos não serão consumidos no país e a renda interna proveniente será a modesta soma de alguns meticais por ano, que ficará com as instituições estatais. Moçambique não é a Bahia, pois a África não é o Brasil. Mas o “Havaí é aqui” e lá.

Como se observa, são projetos que podem ser viáveis economicamente, mas não são sustentáveis do ponto de vista ecológico e muito menos social.

Ao se concretizar a proposta em análise, faremos com que o aprofundamento da relação com a África, tão querida quanto necessária, se dê por um empreendimento tipo colonial comandado por fazendeiros (e jagunços) e com a benção dos estados.

Por desconhecimento da história, despreparo dos envolvidos, falta de objetivos estratégicos, estrutura e planejamento do empreendimento, incluído aí o nosso Estado (pese os avanços recentes), a aventura brasileira na África, nos moldes apresentado, tem muita chance de se dedicar a ir descobrir a roda no cerrado e cair no ridículo, perder dinheiro e criar novos personagens conradianos.

Mas, se der certo, dará razão a uma anterior parceria entre Brasil e Moçambique, a de Chico e Rui Guerra, por demais conhecida: “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um império colonial (...), um imenso Portugal.”

Entretanto, um outro modelo de cooperação e investimento entre Brasil e o continente africano é possível e urgente de ser pensado. Mas temos que nos preparar internamente para isso, num escopo do que queremos para o nosso povo e das relações entre países.

É momento de governo, Estado, universidades, empresários, instituições públicas e privadas, como o Instituto Lula, opinarem sobre um novo modelo de parceria entre Brasil e a África, que envolvesse diferentes agentes brasileiros e africanos, inclusive os fazendeiros do cerrado, para encontrar outro ideal a ser cumprido.



Economista, doutor em história econômica pela USP. Trabalhou mais de 12 anos em Moçambique, onde coordenou projetos agro-industriais na região de Niassa, Cabo Delgado e Nampula, após a independência em 1975, no ministério da Agricultura e no Banco de Desenvolvimento. Foi diretor do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro.

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