sábado, 25 de abril de 2009
Editorial
E eis que O Diplomático chega a sua quarta edição. E com novidades! A primeira é que este talvez seja o último número da publicação editado por mim, Max Gimenes, como o foram todos os anteriores. Para quem não sabe, estou com a matrícula trancada na Belas Artes pelo fato de, desde o início do ano, estar cursando Ciências Sociais na USP. É claro que eu fiz e continuo fazendo questão de colaborar com o CA, mas é razoável que este blog seja editado por alguém que esteja efetivamente matriculado no curso.
E esse alguém já existe, é a competentíssima Mariana Nunes de Moura Souza, aluna do sétimo semestre e que por acaso também atua profissionalmente na área de comunicação. Enfim, a partir de agora a Secretária de Comunicação do Centro Acadêmico de Relações Internacionais Benário Prestes é ela! Com isso, Mariana passa a ocupar também uma das sete vagas do Conselho Editorial de O Diplomático, assim como Aline Ossani, estudante do terceiro semestre, que se tornou Secretária de Movimentos Sociais no lugar do Yuri, que há algum tempo abandonou a gestão Nova Ordem Acadêmica.
A segunda novidade é que, para que esse período de transição ocorra sem maiores problemas, O Diplomático tornou-se uma publicação bimestral. A próxima edição, de maio/junho, será já provavelmente editada pela Mariana, mulher que pode certamente levar este blog em frente com qualidade literária e espírito crítico.
A seção Bate-papo Internacionalista abaixo traz um trecho de uma entrevista com a filósofa Marilena Chaui, gentilmente liberado pela revista CULT para nossa publicação. O único artigo desta edição, casado com a seção Imagem do Mês, foi escrito pelo presidente do CA, Marcio Moraes do Nascimento, e versa sobre a opinião deste acerca da participação de Mario Marconini na Semana Diplomática, que ocorreu de 13 a 17 de abril na BA.
A parte final desta edição, Resenhas, também tem novidades: a opinião sobre dois livros foram trazidas. Aline Ossani, aluna do terceiro semestre, escreveu sobre O menino do pijama listrado, de John Boyne (Cia. da Letras, 2007), obra que aborda o nazismo e o marcante período da II Guerra Mundial. E eu escrevi sobre O Massacre, de Eric Nepomuceno (Planeta, 2007), ótima referência para quem busca entender os conflitos em torno da questão da terra no Brasil e o porquê do chamado “Abril Vermelho” promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Enfim, a última enquete perguntou aos visitantes do blog quem eles gostariam de ver dando uma Aula Magna. 39% escolheram “Paul Singer”, que foi seguido de perto por “Ceso Lafer”, apoiado por 31%, enquanto apenas 7% manifestaram-se a favor de “Cristovam Buarque” (nome aqui grafado corretamente, em vez de “Cristóvão”, como havia saído na edição anterior). Entre as outras opções, que admitiam a escolha de mais de um nome, 17% escolheram “Celso Lafer ou Paul Singer, mas não Cristovam Buarque” e 9%, “Cristovam Buarque ou Paul Singer, mas não Celso Lafer”. 1% foi indiferente, e as alternativas “Celso Lafer ou Cristovam Buarque, mas não Paul Singer” e “Nenhum” tiveram ambas 0% dos votos. Desta vez O Diplomático quer saber a sua opinião sobre o caso Cesare Battisti. Participe!
E tenham todos uma boa leitura!
O Editor
Agenda Diplomática
Este é o espaço dedicado às atividades do mês a que todos nós devemos estar atentos. Aproveitando o potencial de interação que um blog oferece, a Agenda Diplomática será um espaço sempre em construção, que cada um poderá completar por meio de comentários e/ou e-mails. Fiquem à vontade!
-> Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais (ENERI)
De 30/4 a 3/5 na ESPM
-> III Encontro de Mulheres Estudantes
De 1º a 3 de maio em MG
Qualquer dúvida, deixe um comentário!
Bate-papo Internacionalista
Entrevista a Juvenal Savian Filho e Eduardo Socha, para a revista CULT
Refrear, neste caso, uma declaração talvez mais entusiasmada seria um gesto insensato: Marilena Chaui é, sob vários aspectos, uma das personalidades mais admiráveis do país. Pois não basta dizer que sua trajetória como educadora se confunde com a própria difusão da filosofia universitária no Brasil. Essa constatação, evidente quando se observa a formação de nossos departamentos de filosofia, deriva de apenas uma das linhas de atuação da pensadora. Sua ativa participação nas discussões sobre os rumos da educação brasileira atestam a continuidade do engajamento, que vai além dos muros universitários da FFLCH-USP, onde leciona há 40 anos. Comprovando que também é possível romper com a elitização do ensino de filosofia sem abandonar o rigor que caracteriza a verdadeira atitude filosófica, seu livro Convite à filosofia tornou-se uma introdução surpreendente ao filosofar e referência praticamente obrigatória para o ensino médio.
Em razão de sua militância no campo político-partidário - outra linha de atuação -, seu nome hoje integra o panteão dos intelectuais que forneceram as coordenadas teóricas para a consolidação da democracia em nossa história política recente. Membro fundador do PT, teve experiência no Poder Executivo como secretária de Cultura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina; experiência esta que, segundo a própria filósofa, requisitava um jogo de cintura incompatível com o princípio de autonomia da atividade intelectual, esta sim sua vocação declarada. Distante do Executivo, não deixou porém de atuar como conselheira e porta-voz dos ideais emancipatórios e democráticos dos diversos movimentos de esquerda.
Como se não bastasse, sua pesquisa acadêmica, voltada à filosofia de Espinosa e de Merleau-Ponty, marcada pela interpretação austera dos textos, pelo respeito filológico ao "espírito de letra" dos pensadores, conquistou o reconhecimento nacional e internacional. Distinções como a Ordre des Palmes Académiques, conferida pela Presidência da República francesa (1992), e os dois títulos de doutorado honoris causa, um pela Universidade de Paris 8 (2003), outro pela Universidade de Córdoba (2004), são exemplos que por si testemunham o alcance notável de sua produção.
Sim, claro, existem os críticos de seu trabalho. Mas, infelizmente, poucos merecem ser ouvidos ou lidos. Dizemos infelizmente, porque o primitivismo e a esterilidade de grande parte dessa crítica confirmam a precariedade intelectual de nossos debates, de nosso atual estado de coisas. A tais críticas, que tão logo expoem suas fissuras de raciocínio, caberia apenas o riso da indulgência não fosse o espaço midiático que ocupam, não fosse a agressividade de suas manifestações, o preconceito, o ressentimento e o desvirtuamento rasteiro; as atitudes lamentáveis que afinal determinam o modus operandi de uma parcela da direita brasileira.
Na entrega do honoris causa pela Universidade de Paris, disseram: "Para alguns, a filosofia é uma carreira universitária. Para outros, mais raros, ela é um combate. Era, certamente, o caso de Espinosa. E é também, sem dúvida, o de Marilena Chaui". Talvez isso explique a resistência e a polivalência da pensadora em um país com tantas adversidades. Talvez isso justifique também o espírito enérgico pelo qual manifesta suas convicções na educação, na política, em sua pesquisa acadêmica. Mas o segredo maior parece ser o apreço pelo tempo necessário à reflexão. Na mesma cerimônia, Claude Lefort lembrou que a eloquência e a rapidez de sua inteligência não ocultam paradoxalmente o traço que melhor caracteriza a filósofa: a paciência do pensamento.
Marilena prepara atualmente o segundo volume de A nervura do real, continuação de sua obra sobre política em Espinosa. Nesta entrevista, concedida à CULT, a filósofa fala sobre a atual crise financeira, a popularidade do governo Lula, a inclusão da filosofia no ensino médio e também sobre sua trajetória de vida.
CULT - Diante da crise, a senhora acredita que estamos vivendo um momento histórico privilegiado para a reorganização da esquerda, para a reavaliação de seu conteúdo programático, para novas formas de mobilização popular? Ou a oportunidade será absorvida pelo redemoinho ideológico do liberalismo, agora em versão "light", de caráter mais keynesiano?
Marilena Chaui - Penso que as duas possibilidades estão dadas. Considero este um momento privilegiado, pois o fim do neoliberalismo (e não do capitalismo, claro!) abre um campo de reflexões novas para a esquerda e, uma vez que as atenções da economia e das políticas governamentais se voltam novamente para a esfera da produção e do trabalho (aquilo que significativamente os economistas agora chamam de "economia real"), também se abre um campo para práticas de classe por parte dos trabalhadores, assim como se torna possível o reaparecimento de movimentos sociais dirigidos aos direitos econômicos, sociais e políticos.
Pois está colocada em questão a operação própria do neoliberalismo, qual seja, a de dirigir todos os recursos públicos para os interesses do capital, levando à privatização dos direitos sociais, ao transformá-los em serviços privados a serem adquiridos no mercado. O pensamento e a práxis se abrem porque a percepção da irracionalidade do mercado desmantela a crença em sua suposta racionalidade autônoma, crença que durante 30 anos assegurou a hegemonia ideológica do chamado "pensamento único".
Ou seja, quando se fala em "economia real" para se referir à esfera da produção, o que se anuncia é a retomada da discussão do núcleo do modo de produção capitalista, isto é, o valor produzido pelo trabalho, e havia sido justamente isso que o monetarismo neoliberal julgara ter liquidado para sempre ao supor que poderia tratar o capital como moeda e não como resultado do processo de trabalho.
Sem dúvida, a abertura do tempo histórico será um processo longo e difícil e por isso mesmo, a curto prazo, irá prevalecer a tentativa de um neoliberalismo moderado, temperado com idéias keynesianas. Porém, o simples fato de vermos os governos e partidos de direita propondo medidas de cunho social-democrata já indica os limites da tentativa de manter o capital financeiro na direção da economia. Além disso, observa-se que as medidas econômicas e políticas colocam novamente na cena a figura do Estado nacional, que o "pensamento único" e a chamada globalização haviam decretado extinto.
Em outras palavras, não é tanto a figura do Estado nacional que importa aqui e sim o fato de que com ele reaparece a figura da sociedade civil, na qual se dá a luta de classes, que o neoliberalismo também considerava extinta. Não se trata de um retorno à situação anterior ao neoliberalismo - essa é a crença da direita, ao tentar dar um jeito numa política neoliberal com pitadas social-democratas - e sim de algo novo que, como tal, suscitará um pensamento novo e uma práxis nova. Em suma, o neoliberalismo, dirigindo os fundos públicos exclusivamente para o capital, se caracterizou pelo encolhimento do espaço público republicano e democrático e pelo alargamento do espaço privado dos interesses de mercado; seu fim, portanto, pode significar a reabertura do espaço público e o encolhimento do espaço privado.
CULT - A senhora disse que o governo atual "não é o governo dos nossos sonhos, não é exatamente da esquerda", que não teria o perfil de esquerda. Considerando, portanto, essa ambiguidade ideológica que se reflete na própria agenda do governo, a senhora acredita que políticas assistencialistas, além do carisma e da identificação popular do presidente, são suficientes para explicar sua boa avaliação?
MC - Sim e não. Sim, porque num país em que o corte de classe sempre definiu os governos, isto é, em que as políticas voltadas para os direitos sociais, políticos e culturais de todos os cidadãos nunca foram desenvolvidas ou, quando o foram, nunca foram prioritárias, em que as carências da maioria da sociedade sempre foram ignoradas em nome dos privilégios da minoria, as ações deste governo instituem práticas de inclusão sem precedentes na história do Brasil e, em grande parte, são responsáveis pela avaliação positiva do governo.
Não, porque a avaliação positiva do governo perpassa todas as classes sociais, indicando que há aprovação de outras ações governamentais, além daquelas voltadas para a transferência de renda e inclusão social; há aprovação da política externa, marcada pela independência, do PAC, da maneira como o Brasil sofrerá menos que outros os efeitos da crise financeira etc.
Penso também que é preciso dar um basta à tentativa de caracterizar o governo e o presidente da República como populistas. O populismo (tal como concebido pela sociologia brasileira, já que o conceito não é homogêneo para todas as sociedades) é a política da classe dominante para exercer o controle sobre as classes populares e/ou sobre a classe média tanto por meio de concessão de benefícios pontuais quanto por meio da figura do governante como salvador e protetor.
Ora, todos esses traços estão ausentes no governo Lula: o atual presidente da República não pertence à classe dominante, não concede benefícios pontuais e sim assegura a instituição de direitos com os quais se institui uma democracia, consequentemente, a figura do governante não tem a marca da transcendência, necessária à dimensão salvífica e protetora do dirigente não democrático.
Aliás, um dos pontos mais caros à mídia, que serve como ponta de lança nos ataques dirigidos ao presidente, é exatamente sua condição de classe: um operário sem diploma universitário, que não fala várias línguas, que comete gafes em situações de etiqueta e cerimonial etc. Ou seja, a mídia entra em contradição consigo mesma quando junta populismo e presidente operário sem diploma universitário.
(...)
A íntegra da entrevista está disponível na edição de março da revista CULT.
Refrear, neste caso, uma declaração talvez mais entusiasmada seria um gesto insensato: Marilena Chaui é, sob vários aspectos, uma das personalidades mais admiráveis do país. Pois não basta dizer que sua trajetória como educadora se confunde com a própria difusão da filosofia universitária no Brasil. Essa constatação, evidente quando se observa a formação de nossos departamentos de filosofia, deriva de apenas uma das linhas de atuação da pensadora. Sua ativa participação nas discussões sobre os rumos da educação brasileira atestam a continuidade do engajamento, que vai além dos muros universitários da FFLCH-USP, onde leciona há 40 anos. Comprovando que também é possível romper com a elitização do ensino de filosofia sem abandonar o rigor que caracteriza a verdadeira atitude filosófica, seu livro Convite à filosofia tornou-se uma introdução surpreendente ao filosofar e referência praticamente obrigatória para o ensino médio.
Em razão de sua militância no campo político-partidário - outra linha de atuação -, seu nome hoje integra o panteão dos intelectuais que forneceram as coordenadas teóricas para a consolidação da democracia em nossa história política recente. Membro fundador do PT, teve experiência no Poder Executivo como secretária de Cultura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina; experiência esta que, segundo a própria filósofa, requisitava um jogo de cintura incompatível com o princípio de autonomia da atividade intelectual, esta sim sua vocação declarada. Distante do Executivo, não deixou porém de atuar como conselheira e porta-voz dos ideais emancipatórios e democráticos dos diversos movimentos de esquerda.
Como se não bastasse, sua pesquisa acadêmica, voltada à filosofia de Espinosa e de Merleau-Ponty, marcada pela interpretação austera dos textos, pelo respeito filológico ao "espírito de letra" dos pensadores, conquistou o reconhecimento nacional e internacional. Distinções como a Ordre des Palmes Académiques, conferida pela Presidência da República francesa (1992), e os dois títulos de doutorado honoris causa, um pela Universidade de Paris 8 (2003), outro pela Universidade de Córdoba (2004), são exemplos que por si testemunham o alcance notável de sua produção.
Sim, claro, existem os críticos de seu trabalho. Mas, infelizmente, poucos merecem ser ouvidos ou lidos. Dizemos infelizmente, porque o primitivismo e a esterilidade de grande parte dessa crítica confirmam a precariedade intelectual de nossos debates, de nosso atual estado de coisas. A tais críticas, que tão logo expoem suas fissuras de raciocínio, caberia apenas o riso da indulgência não fosse o espaço midiático que ocupam, não fosse a agressividade de suas manifestações, o preconceito, o ressentimento e o desvirtuamento rasteiro; as atitudes lamentáveis que afinal determinam o modus operandi de uma parcela da direita brasileira.
Na entrega do honoris causa pela Universidade de Paris, disseram: "Para alguns, a filosofia é uma carreira universitária. Para outros, mais raros, ela é um combate. Era, certamente, o caso de Espinosa. E é também, sem dúvida, o de Marilena Chaui". Talvez isso explique a resistência e a polivalência da pensadora em um país com tantas adversidades. Talvez isso justifique também o espírito enérgico pelo qual manifesta suas convicções na educação, na política, em sua pesquisa acadêmica. Mas o segredo maior parece ser o apreço pelo tempo necessário à reflexão. Na mesma cerimônia, Claude Lefort lembrou que a eloquência e a rapidez de sua inteligência não ocultam paradoxalmente o traço que melhor caracteriza a filósofa: a paciência do pensamento.
Marilena prepara atualmente o segundo volume de A nervura do real, continuação de sua obra sobre política em Espinosa. Nesta entrevista, concedida à CULT, a filósofa fala sobre a atual crise financeira, a popularidade do governo Lula, a inclusão da filosofia no ensino médio e também sobre sua trajetória de vida.
CULT - Diante da crise, a senhora acredita que estamos vivendo um momento histórico privilegiado para a reorganização da esquerda, para a reavaliação de seu conteúdo programático, para novas formas de mobilização popular? Ou a oportunidade será absorvida pelo redemoinho ideológico do liberalismo, agora em versão "light", de caráter mais keynesiano?
Marilena Chaui - Penso que as duas possibilidades estão dadas. Considero este um momento privilegiado, pois o fim do neoliberalismo (e não do capitalismo, claro!) abre um campo de reflexões novas para a esquerda e, uma vez que as atenções da economia e das políticas governamentais se voltam novamente para a esfera da produção e do trabalho (aquilo que significativamente os economistas agora chamam de "economia real"), também se abre um campo para práticas de classe por parte dos trabalhadores, assim como se torna possível o reaparecimento de movimentos sociais dirigidos aos direitos econômicos, sociais e políticos.
Pois está colocada em questão a operação própria do neoliberalismo, qual seja, a de dirigir todos os recursos públicos para os interesses do capital, levando à privatização dos direitos sociais, ao transformá-los em serviços privados a serem adquiridos no mercado. O pensamento e a práxis se abrem porque a percepção da irracionalidade do mercado desmantela a crença em sua suposta racionalidade autônoma, crença que durante 30 anos assegurou a hegemonia ideológica do chamado "pensamento único".
Ou seja, quando se fala em "economia real" para se referir à esfera da produção, o que se anuncia é a retomada da discussão do núcleo do modo de produção capitalista, isto é, o valor produzido pelo trabalho, e havia sido justamente isso que o monetarismo neoliberal julgara ter liquidado para sempre ao supor que poderia tratar o capital como moeda e não como resultado do processo de trabalho.
Sem dúvida, a abertura do tempo histórico será um processo longo e difícil e por isso mesmo, a curto prazo, irá prevalecer a tentativa de um neoliberalismo moderado, temperado com idéias keynesianas. Porém, o simples fato de vermos os governos e partidos de direita propondo medidas de cunho social-democrata já indica os limites da tentativa de manter o capital financeiro na direção da economia. Além disso, observa-se que as medidas econômicas e políticas colocam novamente na cena a figura do Estado nacional, que o "pensamento único" e a chamada globalização haviam decretado extinto.
Em outras palavras, não é tanto a figura do Estado nacional que importa aqui e sim o fato de que com ele reaparece a figura da sociedade civil, na qual se dá a luta de classes, que o neoliberalismo também considerava extinta. Não se trata de um retorno à situação anterior ao neoliberalismo - essa é a crença da direita, ao tentar dar um jeito numa política neoliberal com pitadas social-democratas - e sim de algo novo que, como tal, suscitará um pensamento novo e uma práxis nova. Em suma, o neoliberalismo, dirigindo os fundos públicos exclusivamente para o capital, se caracterizou pelo encolhimento do espaço público republicano e democrático e pelo alargamento do espaço privado dos interesses de mercado; seu fim, portanto, pode significar a reabertura do espaço público e o encolhimento do espaço privado.
CULT - A senhora disse que o governo atual "não é o governo dos nossos sonhos, não é exatamente da esquerda", que não teria o perfil de esquerda. Considerando, portanto, essa ambiguidade ideológica que se reflete na própria agenda do governo, a senhora acredita que políticas assistencialistas, além do carisma e da identificação popular do presidente, são suficientes para explicar sua boa avaliação?
MC - Sim e não. Sim, porque num país em que o corte de classe sempre definiu os governos, isto é, em que as políticas voltadas para os direitos sociais, políticos e culturais de todos os cidadãos nunca foram desenvolvidas ou, quando o foram, nunca foram prioritárias, em que as carências da maioria da sociedade sempre foram ignoradas em nome dos privilégios da minoria, as ações deste governo instituem práticas de inclusão sem precedentes na história do Brasil e, em grande parte, são responsáveis pela avaliação positiva do governo.
Não, porque a avaliação positiva do governo perpassa todas as classes sociais, indicando que há aprovação de outras ações governamentais, além daquelas voltadas para a transferência de renda e inclusão social; há aprovação da política externa, marcada pela independência, do PAC, da maneira como o Brasil sofrerá menos que outros os efeitos da crise financeira etc.
Penso também que é preciso dar um basta à tentativa de caracterizar o governo e o presidente da República como populistas. O populismo (tal como concebido pela sociologia brasileira, já que o conceito não é homogêneo para todas as sociedades) é a política da classe dominante para exercer o controle sobre as classes populares e/ou sobre a classe média tanto por meio de concessão de benefícios pontuais quanto por meio da figura do governante como salvador e protetor.
Ora, todos esses traços estão ausentes no governo Lula: o atual presidente da República não pertence à classe dominante, não concede benefícios pontuais e sim assegura a instituição de direitos com os quais se institui uma democracia, consequentemente, a figura do governante não tem a marca da transcendência, necessária à dimensão salvífica e protetora do dirigente não democrático.
Aliás, um dos pontos mais caros à mídia, que serve como ponta de lança nos ataques dirigidos ao presidente, é exatamente sua condição de classe: um operário sem diploma universitário, que não fala várias línguas, que comete gafes em situações de etiqueta e cerimonial etc. Ou seja, a mídia entra em contradição consigo mesma quando junta populismo e presidente operário sem diploma universitário.
(...)
A íntegra da entrevista está disponível na edição de março da revista CULT.
Opinião Internacionalista + Imagem do Mês
Para ver o seu artigo publicado nesta seção, escreva para nós (novaordemacademica@gmail.com). Como assunto da mensagem, coloque a palavra “Opinião”.
O FEBEABA (Festival de Besteiras que Assola a Belas Artes) do Marconini
Por Marcio Moraes do Nascimento
Na semana do dia 13 a 17 de abril, foi organizada pela Coordenação do Curso de Relações Internacionais da Belas Artes a Semana Diplomática. Dentre todos os convidados me chamou a atenção a Palestra do Sr. Mario Marconini, representante da Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP) e que tinha como tema de sua exposição “A Crise e as suas Repercussões no Comércio Internacional”.
Infelizmente o palestrante se ateve de forma superficial ao tema, parecia não ter muito a dizer, e o pouco que disse a respeito não passou de um festival de obviedades, o que era de se esperar já que a atual crise põe em cheque muito dos interesses defendidos pelo palestrante e sua instituição.
É claro que para superar suas deficiências o Sr. Marconini apelou para as típicas e esperadas piadas de cunho fartamente preconceituoso. Seu principal alvo foram os governantes da América Latina. Falou de Hugo Chávez, de Cristina Kirchner, de Evo Morales, não sobrou pedra sobre pedra. Do presidente brasileiro, falou: “Parece um elefante bêbado”. Eu, cá com meus botões, pensei: o que vem a ser um “elefante bêbado”, será que alguém já viu um?
Outras pérolas do Sr. Marconini: “O Brasil deveria dar uma cacetada na Bolívia”; “ONGs de direitos humanos não podem protestar contra a OMC, virou moda”. Ouvindo esse Sr., lembrei-me do Stanislaw Ponte Preta e seu FEBEAPA (Festival de Besteiras que Assola o País). O palestrante transformou a noite em que participou da Semana Diplomática num FEBEABA (Festival de Besteiras que Assola a Belas Artes).
De forma desafortunada, não pude questionar o palestrante em relação a suas afirmações preconceituosas e obtusas, pareceu-me que as perguntas eram pré-estabelecidas e ninguém pôde fazer um questionamento mais incisivo.
Gostaria de dizer ao Sr. Mario Marconini que, mesmo representando um projeto de poder (o projeto de poder da FIESP, que se encontra explicitado nos relatórios da Operação Castelo de Areia da Polícia Federal) diametralmente oposto ao de diversos chefes de Estado da América Latina, isso não lhe dá o direito de desrespeitá-los de forma tão grosseira.
Suas frases de efeito arrancaram gracejos da platéia, porém essas teriam sido mais propícias se ditas num boteco e não num ambiente acadêmico, numa palestra para um público que aprende a respeitar os valores da democracia e da diplomacia. Dizer que o Brasil deveria dar uma “cacetada” na Bolívia contradiz completamente a nossa bela tradição diplomática, reconhecida no mundo inteiro com uma das melhores escolas da área.
Se me fosse permitido falar na ocasião, diria que as ONGs de direitos humanos exercem um papel importante já que os direitos humanos, sociais e trabalhistas são vilipendiados cotidianamente pelas transnacionais e pelo agronegócio, e que isso é um assunto que deve ser tratado em organismos como a OMC. Talvez ele relativizasse o que disse, me pareceu o tipo de pessoa que faz isso, daqueles que acreditam em “ditabrandas”.
Queria saber do palestrante por que, ao se referir à Bolívia, insinuou que esse país não tinha povo. Qual o motivo? Talvez pelo fato de o presidente dessa nação ser índio e seu povo ser majoritariamente de origem indígena? Lembrei-me de duas coisas: primeiro, do Cônsul boliviano que esteve na Belas Artes na Semana Diplomática de 2007 que, com humildade e simpatia, nos explicou os problemas sociais do país, fruto de anos de espoliação do povo por parte de governantes descompromissados com o bem-estar da população. E, segundo, que a FIESP deve apoiar as instituições congêneres do departamento de Santa Cruz de la Sierra, que a todo momento proclama o golpe, numa demonstração de fascismo político e desrespeito à vontade popular.
O Sr. Marconini considera o governo Lula de esquerda, e complementa: “Mesmo sendo de esquerda, eles não são protecionistas”. Primeiro, o Governo Lula não é de esquerda, no máximo é um governo de centro-esquerda, e olha que estou sendo bonzinho, pois na coalizão governista convivem partidos de centro-direita, sem contar o famigerado presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. E, segundo, queria saber de onde o palestrante tirou que a esquerda é protecionista, já li muita teoria de esquerda e nunca li uma coisa dessas. Ao contrário, a esquerda é internacionalista por essência, é só lembrarmos do velho Marx.
A conclusão que tenho de tudo isso é que não cabe no nosso curso, tão bem coordenado por uma pessoa que é referência moral e intelectual a todos os alunos de Relações Internacionais da Belas Artes, esse tipo de palestra.
Não sei se Mario Marconini sempre é assim ou se estava num dia ruim, talvez exasperado com as consequências da Operação Castelo de Areia. O que espero sinceramente é que o FEBEABA do Marconini nunca mais venha nos visitar.
Na semana do dia 13 a 17 de abril, foi organizada pela Coordenação do Curso de Relações Internacionais da Belas Artes a Semana Diplomática. Dentre todos os convidados me chamou a atenção a Palestra do Sr. Mario Marconini, representante da Federação das Industrias do Estado de São Paulo (FIESP) e que tinha como tema de sua exposição “A Crise e as suas Repercussões no Comércio Internacional”.
Infelizmente o palestrante se ateve de forma superficial ao tema, parecia não ter muito a dizer, e o pouco que disse a respeito não passou de um festival de obviedades, o que era de se esperar já que a atual crise põe em cheque muito dos interesses defendidos pelo palestrante e sua instituição.
É claro que para superar suas deficiências o Sr. Marconini apelou para as típicas e esperadas piadas de cunho fartamente preconceituoso. Seu principal alvo foram os governantes da América Latina. Falou de Hugo Chávez, de Cristina Kirchner, de Evo Morales, não sobrou pedra sobre pedra. Do presidente brasileiro, falou: “Parece um elefante bêbado”. Eu, cá com meus botões, pensei: o que vem a ser um “elefante bêbado”, será que alguém já viu um?
Outras pérolas do Sr. Marconini: “O Brasil deveria dar uma cacetada na Bolívia”; “ONGs de direitos humanos não podem protestar contra a OMC, virou moda”. Ouvindo esse Sr., lembrei-me do Stanislaw Ponte Preta e seu FEBEAPA (Festival de Besteiras que Assola o País). O palestrante transformou a noite em que participou da Semana Diplomática num FEBEABA (Festival de Besteiras que Assola a Belas Artes).
De forma desafortunada, não pude questionar o palestrante em relação a suas afirmações preconceituosas e obtusas, pareceu-me que as perguntas eram pré-estabelecidas e ninguém pôde fazer um questionamento mais incisivo.
Gostaria de dizer ao Sr. Mario Marconini que, mesmo representando um projeto de poder (o projeto de poder da FIESP, que se encontra explicitado nos relatórios da Operação Castelo de Areia da Polícia Federal) diametralmente oposto ao de diversos chefes de Estado da América Latina, isso não lhe dá o direito de desrespeitá-los de forma tão grosseira.
Suas frases de efeito arrancaram gracejos da platéia, porém essas teriam sido mais propícias se ditas num boteco e não num ambiente acadêmico, numa palestra para um público que aprende a respeitar os valores da democracia e da diplomacia. Dizer que o Brasil deveria dar uma “cacetada” na Bolívia contradiz completamente a nossa bela tradição diplomática, reconhecida no mundo inteiro com uma das melhores escolas da área.
Se me fosse permitido falar na ocasião, diria que as ONGs de direitos humanos exercem um papel importante já que os direitos humanos, sociais e trabalhistas são vilipendiados cotidianamente pelas transnacionais e pelo agronegócio, e que isso é um assunto que deve ser tratado em organismos como a OMC. Talvez ele relativizasse o que disse, me pareceu o tipo de pessoa que faz isso, daqueles que acreditam em “ditabrandas”.
Queria saber do palestrante por que, ao se referir à Bolívia, insinuou que esse país não tinha povo. Qual o motivo? Talvez pelo fato de o presidente dessa nação ser índio e seu povo ser majoritariamente de origem indígena? Lembrei-me de duas coisas: primeiro, do Cônsul boliviano que esteve na Belas Artes na Semana Diplomática de 2007 que, com humildade e simpatia, nos explicou os problemas sociais do país, fruto de anos de espoliação do povo por parte de governantes descompromissados com o bem-estar da população. E, segundo, que a FIESP deve apoiar as instituições congêneres do departamento de Santa Cruz de la Sierra, que a todo momento proclama o golpe, numa demonstração de fascismo político e desrespeito à vontade popular.
O Sr. Marconini considera o governo Lula de esquerda, e complementa: “Mesmo sendo de esquerda, eles não são protecionistas”. Primeiro, o Governo Lula não é de esquerda, no máximo é um governo de centro-esquerda, e olha que estou sendo bonzinho, pois na coalizão governista convivem partidos de centro-direita, sem contar o famigerado presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. E, segundo, queria saber de onde o palestrante tirou que a esquerda é protecionista, já li muita teoria de esquerda e nunca li uma coisa dessas. Ao contrário, a esquerda é internacionalista por essência, é só lembrarmos do velho Marx.
A conclusão que tenho de tudo isso é que não cabe no nosso curso, tão bem coordenado por uma pessoa que é referência moral e intelectual a todos os alunos de Relações Internacionais da Belas Artes, esse tipo de palestra.
Não sei se Mario Marconini sempre é assim ou se estava num dia ruim, talvez exasperado com as consequências da Operação Castelo de Areia. O que espero sinceramente é que o FEBEABA do Marconini nunca mais venha nos visitar.
Resenhas
Para ver a sua resenha de filme e/ou livro publicada nesta seção, escreva para nós (novaordemacademica@gmail.com). Como assunto da mensagem, coloque a palavra “Resenha”.
O menino do pijama listrado
Por Aline Ossani
Através do olhar de uma criança, John Boyne nos apresenta seu livro O menino do pijama listrado, no qual contrasta a inocência em meio ao ódio e o preconceito deixado pela história do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
O conto se passa no complexo de Auschwitz, o maior entre os 2 mil campos de concentração e trabalhos forçados construídos pelos nazistas.
Bruno, o personagem principal, tem 8 anos e mora com seus pais e sua irmã em uma grande e confortável casa em Berlim. Seu mundo desmorona quando certo dia, ao chegar em casa, se depara com Maria, a empregada, arrumando suas coisas, até mesmo aquelas que ele escondia e não eram da conta de ninguém, pois estavam de mudança. Seu pai fora designado pelo seu chefe, o Fúria, para um trabalho em outra cidade.
Como característica de quase todos os homens, as mudanças despertam certos sentimentos de angústia e inquietações e, com Bruno, não foi diferente. Achou a nova casa pequena e se entristeceu por não ter vizinhos nem garotos de sua idade para brincar.
Uma visão da janela do seu quarto o intrigava. Avistava pessoas vestidas com as mesmas roupas, todos usavam pijama cinza listrado com um boné cinza na cabeça.
Movido por seu espírito aventureiro, Bruno saía para explorar os arredores da casa. Em uma de suas explorações se deparou com uma cerca que dividia sua casa do local para onde estavam indo as pessoas de pijama listrado. E também conheceu Shmuel, um garoto da sua idade com quem, a partir daquele dia, passaria a se encontrar e passar tardes e mais tardes conversando.
O destaque do livro é exatamente na construção dessa amizade livre de preconceitos em tempos de guerra. Os garotos não tinham conhecimento do marco da história em que viviam.
Bruno pensava que o outro lado da cerca era mais alegre e sempre insistia a Shmuel para que o levasse para lá. E não demorou para que isso acontecesse, mas ele se decepcionou com o que encontrou: pessoas tristes, magras, com olhos fundos e as cabeças raspadas. Viu também alguns soldados, que riam e seguravam armas. O que Bruno não imaginava era que essa sua aventura não teria volta.
Filho de um oficial nazista, o personagem principal é vítima dos meios de dizimação em massa dos quais o pai era o mandante. O ódio aos judeus dominava o pensamento nazista e estes viam a raça como a chave para o entendimento da história do mundo.
O livro choca seus leitores por tratar de maneira singela e surpreendente um fato que marcou e marcará a história para sempre.
Através do olhar de uma criança, John Boyne nos apresenta seu livro O menino do pijama listrado, no qual contrasta a inocência em meio ao ódio e o preconceito deixado pela história do holocausto durante a Segunda Guerra Mundial.
O conto se passa no complexo de Auschwitz, o maior entre os 2 mil campos de concentração e trabalhos forçados construídos pelos nazistas.
Bruno, o personagem principal, tem 8 anos e mora com seus pais e sua irmã em uma grande e confortável casa em Berlim. Seu mundo desmorona quando certo dia, ao chegar em casa, se depara com Maria, a empregada, arrumando suas coisas, até mesmo aquelas que ele escondia e não eram da conta de ninguém, pois estavam de mudança. Seu pai fora designado pelo seu chefe, o Fúria, para um trabalho em outra cidade.
Como característica de quase todos os homens, as mudanças despertam certos sentimentos de angústia e inquietações e, com Bruno, não foi diferente. Achou a nova casa pequena e se entristeceu por não ter vizinhos nem garotos de sua idade para brincar.
Uma visão da janela do seu quarto o intrigava. Avistava pessoas vestidas com as mesmas roupas, todos usavam pijama cinza listrado com um boné cinza na cabeça.
Movido por seu espírito aventureiro, Bruno saía para explorar os arredores da casa. Em uma de suas explorações se deparou com uma cerca que dividia sua casa do local para onde estavam indo as pessoas de pijama listrado. E também conheceu Shmuel, um garoto da sua idade com quem, a partir daquele dia, passaria a se encontrar e passar tardes e mais tardes conversando.
O destaque do livro é exatamente na construção dessa amizade livre de preconceitos em tempos de guerra. Os garotos não tinham conhecimento do marco da história em que viviam.
Bruno pensava que o outro lado da cerca era mais alegre e sempre insistia a Shmuel para que o levasse para lá. E não demorou para que isso acontecesse, mas ele se decepcionou com o que encontrou: pessoas tristes, magras, com olhos fundos e as cabeças raspadas. Viu também alguns soldados, que riam e seguravam armas. O que Bruno não imaginava era que essa sua aventura não teria volta.
Filho de um oficial nazista, o personagem principal é vítima dos meios de dizimação em massa dos quais o pai era o mandante. O ódio aos judeus dominava o pensamento nazista e estes viam a raça como a chave para o entendimento da história do mundo.
O livro choca seus leitores por tratar de maneira singela e surpreendente um fato que marcou e marcará a história para sempre.
Eric Nepomuceno, um jabuti*
Por Max Gimenes
Na noite do dia 29 de outubro do ano passado, em São Paulo, ocorreu a cerimônia de entrega das estatuetas da 50ª edição do Prêmio Jabuti, cujos vencedores já eram conhecidos desde o dia 23 do mês anterior. O concurso literário, um dos mais tradicionais e prestigiados do país, é organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que reúne diversas empresas do setor livreiro nacional.
Desde 1958, quando o prêmio foi idealizado pelo então presidente da CBL, Edgar Cavalheiro, os primeiros colocados de cada categoria recebem prêmios em dinheiro. Já as estatuetas são estendidas também aos segundos e terceiros lugares. E, nesta edição de 2008, é justamente um livro detentor de uma segunda colocação – na categoria de livro de reportagem – que merece nota, seja pela relevância do tema ou pela maestria com que foi escrito. Ou ainda pelo desejo manifesto do autor de ver a justiça sendo feita neste país em que ele tanto demonstra acreditar.
Trata-se de O Massacre – Eldorado do Carajás: uma história de impunidade (Planeta, 2007), de Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor respeitado por seu trabalho e pela coerência e retidão com que o desempenha. A obra, que conta com um belo projeto de miolo e de capa, traz fotos de Sebastião Salgado, fotógrafo mineiro reconhecido mundialmente por seu estilo singular de captar imagens e momentos, sem dúvida um dos mais respeitados repórteres fotográficos da atualidade, com atuação marcada principalmente por voltar suas lentes para a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, dos excluídos em geral.
Ao avançar pelas primeiras páginas de O Massacre, o leitor logo percebe a profundidade do mergulho que está prestes a dar na história contemporânea do Brasil – e também que está diante de um iminente clássico desta. Ao longo das cinco décadas de premiação do Jabuti, criadores e criaturas entraram para a história literária brasileira, como Jorge Amado, premiado na categoria romance da primeira edição do concurso por Gabriela, Cravo e Canela. Eric Nepomuceno, a seu modo, arrisca-se certamente a trilhar caminho semelhante.
Uma vez iniciada a leitura, embarca-se em uma viagem no tempo de cerca de onze anos. Chega-se à tarde do dia 17 de abril de 1996. O leitor é também levado a viajar no espaço – sem sair do lugar, é claro – rumo à região Norte do Brasil. Mais precisamente, até a margem da rodovia PA-150, a escassos quilômetros de Eldorado do Carajás, no local conhecido como Curva do S. Lá, uma marcha pacífica organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com cerca de 2500 trabalhadores oriundos da ocupação da fazenda Macaxeira, rumava para Belém a fim de levar suas reivindicações ao governo estadual. No caminho, porém, decidiram bloquear a estrada como forma de protesto ante o descaso das autoridades em relação às suas reivindicações, que incluía comida e ônibus para que chegassem à capital paraense.
A estrada seria desobstruída com brutalidade: cerca de 150 policiais militares – armados inclusive com itens alheios ao seu arsenal, como foices e carabinas – promoveram uma verdadeira matança, abrindo fogo contra uma multidão indefesa, em que havia até mesmo mulheres e crianças. Do lado dos sem-terra, dezenove foram os mortos e 69, os feridos – dos quais três viriam a falecer posteriormente em decorrência de complicações causadas pelos tiros. Isso sem contar os traumas psicológicos e os fantasmas da lembrança, que assombram até hoje os dias e as noites de grande parte dos sobreviventes. Do lado policial, onze foi o número de feridos, mas, ao contrário da versão que as elites locais ensaiaram sustentar à época, não houve confronto. Eric é categórico: essa classificação é um atrevimento, o que houve de fato foi uma carnificina premeditada, em que praticamente todos os mortos o foram com os mais macabros requintes de crueldade.
Do poder público, não haveria nada a esperar. Este tinha lado na trincheira. Foi do então governador do Pará que partiu a ordem para a ação da polícia. Os grandes proprietários de terra tinham muita influência nas decisões políticas, e os seus interesses eram os que prevaleciam. A relação era mesmo promíscua: os fazendeiros eram acusados ainda de ter criado um fundo para auxiliar a PM no combate aos sem-terra. Ao final do festival de horrores, conta-se, deram até festa para comemorar o “sucesso” da operação – no caso, tirar a vida dos dirigentes do movimento. Infelizmente, os assassinos teriam mesmo muito a comemorar.
Após dois inquéritos – um militar e um civil – e julgamentos obscuros, somente duas pessoas seriam condenadas: um coronel da PM e seu subordinado de maior patente. Ambos ficaram nove meses recolhidos em estabelecimentos da polícia. Hoje, estão em liberdade. De resto, estão todos livres, leves e soltos. Daí ser o livro de Eric indispensável. Segundo o próprio, ele não tem a intenção de revelar informações bombásticas, mas de recordar um evento brutal e de soprar as brasas desse trágico momento, para que as lembranças não virem cinzas mortas.
Apesar de hoje o MST reconhecer ter errado em sua avaliação – segundo Nepomuceno, os dirigentes achavam que as matanças haviam sido suspensas e que havia espaço para radicalização –, é possível fazer um balanço equilibrado e ponderar que resultados foram obtidos com a marcha: se, por um lado, ficaram os traumas e as famílias dilaceradas, por outro, o governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso foi levado a desocupar a Macaxeira, a instalar o assentamento e a mudar a sua política com relação à reforma agrária frente à pressão da opinião pública. O assentamento se estruturou, superou a agricultura de subsistência e é hoje referência na luta pela democratização da terra. Foi também do massacre que surgiu o chamado “Abril Vermelho”, jornada de ocupações promovida pelo MST no mês de abril para exaltar a resistência daqueles que perderam a vida lutando por dignidade. E, além disso, a partir de então o 17 de abril passou a ser o Dia mundial de Luta pela Terra.
Eric Nepomuceno levou cerca de três anos, do início de 2004 a junho de 2007, para nos presentear com essa bela obra. Consultou testemunhas, livros, processos, relatórios, boletins, inventários, dossiês, inquéritos, artigos, ensaios, jornais e revistas para reconstituir os fatos. Ele narra com altiva sensibilidade a peleja desses brasileiros desafortunados. Leva ao leitor o sofrimento e a angústia que seguramente imperaram na ocasião. Toca o coração daqueles brasileiros que têm respeito e amor pelo próximo. E toca também a mente daqueles que se recusam a achar aceitável que 1% da população concentre 46% das terras em suas mãos enquanto 10% não têm terra ou teto, segundo dados de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentados no livro. A situação, alarmante, em pouco mudou até hoje.
Uma breve pesquisa a respeito do motivo da escolha do jabuti como símbolo do prêmio nos traz uma reflexão bastante interessante. O jabuti seria o animal, de acordo com o folclore brasileiro, que se distingue pela paciência e pela tenacidade com que vence os desafios e, por essa razão, fora escolhido para representar a atividade de escritores, editores, livreiros e gráficos. O jabuti aceitaria sempre os desafios em que a vitória, de antemão, parece sorrir ao adversário, ilusão que logo se desfaz, pois o vencedor é o perseverante e pachorrento personagem do nosso folclore. “Diante do desafio, ele parece sempre sustentado pela convicção íntima de que será o vitorioso, não importam os obstáculos”, diz o site da CBL. Eric Nepomuceno simboliza, com mais propriedade do que qualquer outro premiado, as qualidades de um jabuti. Hoje, o triunfo parece sorrir aos autores do massacre. Escrever um livro que vai contra a corrente do poder estabelecido parece tempo perdido, mas não para Eric, que carrega dentro de si uma chama de esperança na conquista de dias melhores. Chama um tanto pertinaz, diga-se. Para a sorte de todos nós.
Alguns podem pensar que a jornada terminou no dia 20 de abril, quando as vítimas foram enterradas. Porém as cicatrizes continuam abertas. A busca por justiça não é movida por rancor, vingança ou revanchismo; estes sentimentos espúrios são a marca dos algozes. Uma sobrevivente, a certa altura, diz a Eric: “Eu queria esquecer o massacre, mas não dá. Quando a gente anda na rua, encontra sempre uma viúva, um outro mutilado, um órfão...”. Eric Nepomuceno discorre sobre um tema de relevância e atualidade inquestionáveis, imprescindível para o entendimento da nação em que vivemos. Ele mereceu ser premiado, sem dúvida, mas a melhor recompensa e reconhecimento que poderia almejar é a justiça. O prêmio veio rápido, é verdade. A justiça, no entanto, ameaça vir a passos lentos, talvez mais vagarosos até que os de um jabuti.
* Adaptado do portal Correio da Cidadania, originalmente publicado em novembro de 2008.
Na noite do dia 29 de outubro do ano passado, em São Paulo, ocorreu a cerimônia de entrega das estatuetas da 50ª edição do Prêmio Jabuti, cujos vencedores já eram conhecidos desde o dia 23 do mês anterior. O concurso literário, um dos mais tradicionais e prestigiados do país, é organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), entidade que reúne diversas empresas do setor livreiro nacional.
Desde 1958, quando o prêmio foi idealizado pelo então presidente da CBL, Edgar Cavalheiro, os primeiros colocados de cada categoria recebem prêmios em dinheiro. Já as estatuetas são estendidas também aos segundos e terceiros lugares. E, nesta edição de 2008, é justamente um livro detentor de uma segunda colocação – na categoria de livro de reportagem – que merece nota, seja pela relevância do tema ou pela maestria com que foi escrito. Ou ainda pelo desejo manifesto do autor de ver a justiça sendo feita neste país em que ele tanto demonstra acreditar.
Trata-se de O Massacre – Eldorado do Carajás: uma história de impunidade (Planeta, 2007), de Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor respeitado por seu trabalho e pela coerência e retidão com que o desempenha. A obra, que conta com um belo projeto de miolo e de capa, traz fotos de Sebastião Salgado, fotógrafo mineiro reconhecido mundialmente por seu estilo singular de captar imagens e momentos, sem dúvida um dos mais respeitados repórteres fotográficos da atualidade, com atuação marcada principalmente por voltar suas lentes para a vida daqueles que vivem à margem da sociedade, dos excluídos em geral.
Ao avançar pelas primeiras páginas de O Massacre, o leitor logo percebe a profundidade do mergulho que está prestes a dar na história contemporânea do Brasil – e também que está diante de um iminente clássico desta. Ao longo das cinco décadas de premiação do Jabuti, criadores e criaturas entraram para a história literária brasileira, como Jorge Amado, premiado na categoria romance da primeira edição do concurso por Gabriela, Cravo e Canela. Eric Nepomuceno, a seu modo, arrisca-se certamente a trilhar caminho semelhante.
Uma vez iniciada a leitura, embarca-se em uma viagem no tempo de cerca de onze anos. Chega-se à tarde do dia 17 de abril de 1996. O leitor é também levado a viajar no espaço – sem sair do lugar, é claro – rumo à região Norte do Brasil. Mais precisamente, até a margem da rodovia PA-150, a escassos quilômetros de Eldorado do Carajás, no local conhecido como Curva do S. Lá, uma marcha pacífica organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com cerca de 2500 trabalhadores oriundos da ocupação da fazenda Macaxeira, rumava para Belém a fim de levar suas reivindicações ao governo estadual. No caminho, porém, decidiram bloquear a estrada como forma de protesto ante o descaso das autoridades em relação às suas reivindicações, que incluía comida e ônibus para que chegassem à capital paraense.
A estrada seria desobstruída com brutalidade: cerca de 150 policiais militares – armados inclusive com itens alheios ao seu arsenal, como foices e carabinas – promoveram uma verdadeira matança, abrindo fogo contra uma multidão indefesa, em que havia até mesmo mulheres e crianças. Do lado dos sem-terra, dezenove foram os mortos e 69, os feridos – dos quais três viriam a falecer posteriormente em decorrência de complicações causadas pelos tiros. Isso sem contar os traumas psicológicos e os fantasmas da lembrança, que assombram até hoje os dias e as noites de grande parte dos sobreviventes. Do lado policial, onze foi o número de feridos, mas, ao contrário da versão que as elites locais ensaiaram sustentar à época, não houve confronto. Eric é categórico: essa classificação é um atrevimento, o que houve de fato foi uma carnificina premeditada, em que praticamente todos os mortos o foram com os mais macabros requintes de crueldade.
Do poder público, não haveria nada a esperar. Este tinha lado na trincheira. Foi do então governador do Pará que partiu a ordem para a ação da polícia. Os grandes proprietários de terra tinham muita influência nas decisões políticas, e os seus interesses eram os que prevaleciam. A relação era mesmo promíscua: os fazendeiros eram acusados ainda de ter criado um fundo para auxiliar a PM no combate aos sem-terra. Ao final do festival de horrores, conta-se, deram até festa para comemorar o “sucesso” da operação – no caso, tirar a vida dos dirigentes do movimento. Infelizmente, os assassinos teriam mesmo muito a comemorar.
Após dois inquéritos – um militar e um civil – e julgamentos obscuros, somente duas pessoas seriam condenadas: um coronel da PM e seu subordinado de maior patente. Ambos ficaram nove meses recolhidos em estabelecimentos da polícia. Hoje, estão em liberdade. De resto, estão todos livres, leves e soltos. Daí ser o livro de Eric indispensável. Segundo o próprio, ele não tem a intenção de revelar informações bombásticas, mas de recordar um evento brutal e de soprar as brasas desse trágico momento, para que as lembranças não virem cinzas mortas.
Apesar de hoje o MST reconhecer ter errado em sua avaliação – segundo Nepomuceno, os dirigentes achavam que as matanças haviam sido suspensas e que havia espaço para radicalização –, é possível fazer um balanço equilibrado e ponderar que resultados foram obtidos com a marcha: se, por um lado, ficaram os traumas e as famílias dilaceradas, por outro, o governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso foi levado a desocupar a Macaxeira, a instalar o assentamento e a mudar a sua política com relação à reforma agrária frente à pressão da opinião pública. O assentamento se estruturou, superou a agricultura de subsistência e é hoje referência na luta pela democratização da terra. Foi também do massacre que surgiu o chamado “Abril Vermelho”, jornada de ocupações promovida pelo MST no mês de abril para exaltar a resistência daqueles que perderam a vida lutando por dignidade. E, além disso, a partir de então o 17 de abril passou a ser o Dia mundial de Luta pela Terra.
Eric Nepomuceno levou cerca de três anos, do início de 2004 a junho de 2007, para nos presentear com essa bela obra. Consultou testemunhas, livros, processos, relatórios, boletins, inventários, dossiês, inquéritos, artigos, ensaios, jornais e revistas para reconstituir os fatos. Ele narra com altiva sensibilidade a peleja desses brasileiros desafortunados. Leva ao leitor o sofrimento e a angústia que seguramente imperaram na ocasião. Toca o coração daqueles brasileiros que têm respeito e amor pelo próximo. E toca também a mente daqueles que se recusam a achar aceitável que 1% da população concentre 46% das terras em suas mãos enquanto 10% não têm terra ou teto, segundo dados de 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentados no livro. A situação, alarmante, em pouco mudou até hoje.
Uma breve pesquisa a respeito do motivo da escolha do jabuti como símbolo do prêmio nos traz uma reflexão bastante interessante. O jabuti seria o animal, de acordo com o folclore brasileiro, que se distingue pela paciência e pela tenacidade com que vence os desafios e, por essa razão, fora escolhido para representar a atividade de escritores, editores, livreiros e gráficos. O jabuti aceitaria sempre os desafios em que a vitória, de antemão, parece sorrir ao adversário, ilusão que logo se desfaz, pois o vencedor é o perseverante e pachorrento personagem do nosso folclore. “Diante do desafio, ele parece sempre sustentado pela convicção íntima de que será o vitorioso, não importam os obstáculos”, diz o site da CBL. Eric Nepomuceno simboliza, com mais propriedade do que qualquer outro premiado, as qualidades de um jabuti. Hoje, o triunfo parece sorrir aos autores do massacre. Escrever um livro que vai contra a corrente do poder estabelecido parece tempo perdido, mas não para Eric, que carrega dentro de si uma chama de esperança na conquista de dias melhores. Chama um tanto pertinaz, diga-se. Para a sorte de todos nós.
Alguns podem pensar que a jornada terminou no dia 20 de abril, quando as vítimas foram enterradas. Porém as cicatrizes continuam abertas. A busca por justiça não é movida por rancor, vingança ou revanchismo; estes sentimentos espúrios são a marca dos algozes. Uma sobrevivente, a certa altura, diz a Eric: “Eu queria esquecer o massacre, mas não dá. Quando a gente anda na rua, encontra sempre uma viúva, um outro mutilado, um órfão...”. Eric Nepomuceno discorre sobre um tema de relevância e atualidade inquestionáveis, imprescindível para o entendimento da nação em que vivemos. Ele mereceu ser premiado, sem dúvida, mas a melhor recompensa e reconhecimento que poderia almejar é a justiça. O prêmio veio rápido, é verdade. A justiça, no entanto, ameaça vir a passos lentos, talvez mais vagarosos até que os de um jabuti.
* Adaptado do portal Correio da Cidadania, originalmente publicado em novembro de 2008.
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